terça-feira, agosto 08, 2006

Cenas de Julho: Os Mortos

A cidade é antiga. Antigos os prédios, antigas as igrejas. Antigo o sagrado ouro das igrejas. Mais antigas ainda, o desejo que o homem tem desse ouro. Nas antigas igrejas cheias de ouro, a cidade enterrou seus mortos. Piso devagar, de mansinho, evitando o barulho. Como se pudesse acordar os mortos em tão luxuoso túmulo. Apenas os números marcando sua presença. Anônimos, portanto, em meio a tanto ouro. Silêncio no antigo assoalho da antiga igreja, sem palavras.

Por fora, túmulos não tão antigos. Na cidade antiga, o cemitério também é atração turística. Os de fora são menos anônimos que os de dentro, embora descansem com muito mais simplicidade. Na grama, no tempo, as viuvinhas passeiam entre cruzes mal erguidas. Pequenas cruzes de madeira, de ferro, de concreto. Todas baixas, tímidas, acanhadas, ao lado da suntuosa igreja dourada. Manuscritos os nomes dos mortos. Sentidas saudades cheias de erros de grafia. Uma ou outra flor no ferro forjada, numa cruz até alegre. Sobre um ensaio de lápide na grama, flores coloridas, berrantes, feitas de garrafas de refrigerante.

Entre nomes e apelidos, datas já apagadas, alguns túmulos anônimos. Em alguns lugares, a grama recém-colocada. Piso de leve, não quero fazer barulho num cemitério. Mas os olhos, ávidos. De todos, os olhos ávidos. Que histórias não poderiam ser contadas? "Aqui jas os restos mortais de José Pedro do Nascimento." A ironia do nome. "Aqui dorme Antonio de Salis Ferreira. Apelido de Pacotinho. Nasçel 31 de agosto de 1909. Faleçel 6 de março de 1978." Qual teria sido a vida de Pacotinho? Teria sido ferreiro, o Pacotinho? Teria contribuído para o progresso turístico da cidade? Teria visto o crescente ir e vir de pessoas em sua terra, observando, curiosas, seus mortos? Teria forjado alguma cruz para aquele mesmo cemitério? E as crianças que corriam entre os túmulos silenciosos imaginavam suas histórias.

Um grupinho de meninas buscava sinais de que lá estava Caroline. "Tem que ser bem pequenininho, porque ela morreu na barriga da minha prima." Caroline não viu o ouro da igreja, Caroline não viu as flores de plástico pintadas com tinta plástica. Caroline virou atração turística, ao lado da igreja dourada. E virou personagem de qualquer história que qualquer um dos que lá passam ininterruptamente pode contar.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)