domingo, outubro 08, 2006

A dança

Ela dançava, flutuava no chão, rodava a saia do vestido. Seus cabelos pairavam, em raros momentos imperceptíveis, sobre o ar pesado, carregado de fumaça de cigarro. Ela voava. A saia encarnada abria-se em flor. Ela rodava.

Ela suava, e os braços dele, tentando envolvê-la, dançavam em seu corpo escorregadio. Ela, quase intocável. Ele, arfante. As mãos que seguravam, por breves instantes, o tecido frio que se ia esquentando. Eles dançavam.

Eles dançavam, e eram o casal mais invejado da festa. Os passos: compasso. A respiração ritmada. Os sorrisos distribuídos, as pernas levemente enlaçadas. Os olhares, cúmplices. Invejados.

- Você me joga pro alto na próxima parada, ok?

- Não foi como nós combinamos?

- Isso, é só pra não esquecer.

- Nunca esqueço.

E as mãos de Gilberto tentavam segurar-se no corpo vestido de Celeste. Ele, comovido. Ela, mecânica. Aquele era o papel que ela deveria representar.

A leve parada da música. A banda que se preparava para o grand finale. A tensão do momento. Gilberto puxou para si o corpo leve e grudento de Celeste. Ela lançou-lhe um olhar de confiança - cobrança? Atraiu-a para si, empurrou-a para longe, fazendo encarnar, à luz do salão, a saia rodada do vestido, correu para alcançar suas costas curvadas, para levantá-la, alçá-la, jogá-la. Ela, joguete, marionete. Entregue, submissa. Cobrando, com o olhar confiante. Os profundos olhos castanhos de Celeste se fecharam por um segundo.

Confiança? Entregar-se? O que era aquilo, afinal? Havia anos que trabalhavam juntos, que dançavam juntos, que ela se jogava, que ela se deixava jogar, e Gilberto esperando. Gilberto esperava qualquer olhar que lhe desse permissão para enlaçar o corpo de Celeste sem que representasse o mero papel de seu par na dança de salão. Ele esperando, submisso, o momento em que ela cederia e o chamaria para dançar. Ele esperando que ela se abrisse em flor, ele esperando que jogassem tudo para o alto. Que a orquestra acelerasse a música e indicasse que aquele era o mais adequado momento para dizer que eles poderiam se unir sem que houvesse dança.

Mas não era esse o olhar de Celeste. Depois que seus olhos castanhos se fecharam por um segundo, embora entregue, submissa, Gilberto pôde ver que ela dava o melhor de si: e não o dava a ele, e sim a um rapaz, mais novo que ambos, que acompanhava, embevecido, o mais sutil movimento da moça no vestido encarnado de saia rodada. Percebeu, frio. Lâmina que penetra, silenciosa, na pele.

Celeste, submissa, curvada, entregue. Os olhos fechando e abrindo; os do rapaz, fixos. Ela estava diferente naquela noite. Não era como simplesmente deixar que outros homens dançassem com ela - era perceber que ela, de fato, o desejava. Não com outros homens, mas com outro homem. Que havia vencido Gilberto, mesmo sem que houvesse batalha.

Celeste, submissa, curvada, entregue. Gilberto puxou seu corpo, levantou-o aparentemente sem esforço. O corpo leve da moça subiu, voou, e o vestido encarnado desenhou sua trajetória até o chão. Até o chão. Um passo para trás, e Gilberto deixou de segurar a companheira - amada não amante. Um erro, como acontece com qualquer pessoa. Esquecimento bobo. E o baque no chão.

Todos correram, acudiram. Celeste desmaiou. Os olhos castanhos fecharam-se. O vestido, rodado, encarnado, murchou no chão sujo, cheio de pontas apagadas de cigarro. Doces pisados colaram-se aos cabelos castanhos como os olhos. Os lábios mantiveram um pouco do sorriso de quem se sabe observada.

Saiu Gilberto do salão. Ninguém o seguiria. Todos os olhares pertenciam a Celeste, a dama da festa, a que roubara o lugar até da noiva. A que caíra no chão, ainda assim, graciosa. E Gilberto seguiu.

Celeste se recuperou. Foi levada ao hospital, fez os exames, e nada de grave foi detectado. Sorte, talvez. Uma dorzinha de cabeça e nas costas, um analgésico, e ela ficou boa em três dias.

Mas não foi assim com Gilberto. Não haveria mais par. Não haveria mais dança. Ele nunca mais fixaria o olhar castanho de Celeste - não, ele não atendia o telefone, embora ele fosse insistente. Decidiu que seria melhor não dividir sua dança com mais ninguém. Não seria trampolim da exibição de Celeste.

Mas, sim, sentia sua falta. Nas noites de sábado, melancólico, colocava uma música e dançava, imaginando tocar o corpo leve e rijo de Celeste. Nesses momentos, suas mãos se fixavam nele, e não havia platéia, não havia convidados, não havia noiva, não havia mulher mais bonita que ela. Não havia homem que chamasse mais atenção do que ele. Eles eram o único casal possível: o único casal perfeito.

Ele via sua imagem no espelho e fechava os olhos para sentir Celeste, que, àquela hora, dançaria com um outro par, em um outro salão. Uma lágrima correu silenciosa até a boca, e ele a sentiu, quase salgada. Olhou a janela - as luzes piscavam a quilômetros de distância. O vento tocava a música - o grand finale?

Parou, respirou, entregou-se. Felizmente, era ágil, rápido, flexível. A janela se abriu mais que os olhos de Celeste antes de ser jogada para o alto. Ele jogou-se, também. Para o alto, num primeiro momento. Para baixo. O asfalto negro tocou o encarnado de si mesmo - do vestido de Celeste. Um passo para trás. Os olhos fechados: a orquestra parou. A música, a quilômetros de distância, que fazia com que Celeste também fosse jogada para o alto, sem que sentisse sua falta.

Acabou a música, logo emendada a outra. Celeste recebeu os aplausos, simulando modéstia. Agradeceu, pretensamente ruborizada, e dançou - com mais dois, três ou quatro pares. Rodou a saia do vestido encarnado. Mas não se deixou jogar para o alto, novamente, como se pressentisse o perigo de estar viva. Olhou para o lado, para o homem que conhecera havia três semanas, e que traria certamente uma mudança em sua vida, e sorriu.

Ninguém suspeitou o que aconteceria a Gilberto, nem ele mesmo. Para ele, a música simplesmente deixou de tocar. Nem Celeste quis pensar nos motivos que teriam levado o parceiro a saltar, dançando, pela janela. O sorriso durante a dança era uma simulação do que não havia dentro de si - fato que Gilberto não notara.

E, depois, acabou-se. Celeste se casou com o rapaz da festa de casamento, teve três filhos, tornou-se senhora chique da classe média alta que se tentava impor na sociedade. Tentou aprender francês, mas gostava mesmo era da aula de lambaeróbica na academia. Lembrava-se de Gilberto? Sim, de vez em quando. Mas logo se esquecia dele, jogando a lembrança pra longe de si, afastando a idéia mortal de que também se pode sucumbir a uma paixão. Então voltava para a vida, pensava nas compras, nos deveres dos filhos e na academia do início de cada manhã, e tudo ficava mais calmo. Sua vida, cadenciada, não traria surpresa alguma. Até que chegasse seu grand finale.

(Fotografia de Maria de Fátima Silveira)

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)