segunda-feira, setembro 25, 2006

Esboço de história de um acidente na chuva

Ela via o limpador do pára-brisas que subia e descia, subia e descia, passeando no vidro que brilhava às pequenas gotas de chuva, insistentes. Não conseguia imitar o som do limpador, mas fixava o olhar nas luzes que se acendiam nos intervalos do passeio. Se focasse o olhar nos pequenos pontos, logo eles se dispersavam, e o vidro a chuva as lanternas dos automóveis formavam um desenho borrado e brilhante. Às vezes era bom ficar assim, olhando, sem pensar em nada. Só o som irritante do limpador, cadenciado. Buscou respirar por ele. Limpou o ar de seus pulmões, já condicionado ao frio que vinha das grades. Tudo tão funcional. Tudo tão automático. Se desse ré, o limpador traseiro já era ligado, mesmo sem que ela pedisse. O visor mostrava há quanto tempo dirigia. Que distância havia percorrido. Quanto mais poderia andar sem colocar mais gasolina. Quanto faltava para a próxima revisão a ser agendada, marcada, bem paga na concessionária. E as gotas de chuva brilhavam, caindo também das espessas folhas das árvores da avenida das casas velhas. Tudo era disforme, tudo era difuso. À música chatinha, chiada no rádio, uniam-se o barulho irritante do limpador e a buzina dos carros parados. Ela mergulhou em si mesma, apesar das pessoas que iam e vinham, corriam, com suas sobrinhas coloridas, na frente dos automóveis parados e nervosos. A fumaça do escapamento. As nuvens baixas que desciam ao nível do rio. Um véu, um véu, um véu deixando tudo mais difícil de ser visto. Mais bonito? Mais difícil, como criança tateando no escuro. No escuro branco, onde piscavam as luzes vermelhas e amarelas e laranja e azuis de um carro ridiculamente enfeitado. Os barulhos, as luzes. As cores - só as dos guarda-chuvas. Os andaimes, os arames, as obras. As lâmpadas queimadas que tiravam de seus olhos as esculturas da catedral. As flores exaustas de chuva à beira do rio, curvando-se, entregues. O verde mais brilhante das finas e espessas folhas das árvores das avenidas dos rios da cidade feita de nuvem e água.

E ela não pensava em nada. Lá estavam as coisas, lá estavam os seres, os sons. Esmaecidos - aguados. Como quem dorme ao barulho da chuva, ela foi embalada, e deixou de pensar - só sentia. Sentia tanto que sequer percebeu que a luz amarela do sinal se fazia vermelha, e vinha outro carro de lanternas apagadas que nela encostou, que a empurrou, que a arrebatou para fora de si. Tudo era disforme, tudo era difuso. O branco, o cinza, as luzes, o vermelho. O visgo do vermelho - táctil. Os sons. Um véu, um véu, um véu nos seus olhos. Um véu que ia se fechando em seus ouvidos, também, diminuindo o barulho dos gritos, das buzinas, das sirenes.

Ela se tornou neblina.

1 Comments:

At 12:17 AM, Blogger Nelson said...

Um véu que encobre por hora a realidade e nos transporta para onde os sonhos nascem, onde as brumas nos embreagam e a realidade se esmaece difusa ...


... no que não é mais realidade .

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LINDO !!!

Como me faz bem ser transportado por palavras, palavras densas, tão descritivas assim.

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)