segunda-feira, setembro 04, 2006

Arrumação


Era necessário que se fizesse a arrumação. Roupas velhas, palavras esquecidas. Papéis amarelos, frascos de perfume empoeirados. Era necessário desprender-se do passado, abdicar, um pouco, de tantas lembranças. Não queria mais carregar consigo tanta coisa inútil. Não que quisesse esquecer, mas não era preciso ter tudo para que o passado se fizesse presente e também futuro. Não, o futuro deveria ser mais límpido, ainda que viesse escoltado por brumas, pelo véu do suspense, ocultando como as coisas acontecem. Ocultando as coisas. Mas, dentro da gaveta, o passado era tangível.

E então reinventou tudo o que passara, tudo o que não fora, um dia, dia algum. Jogou fora palavras velhas, roupas esquecidas. Frascos de perfume amarelos, papéis empoeirados. Jogou fora tanta coisa inútil, tanto de si mesma, para reinventar-se. Substituir por novos? Substituiu-se. Trocando pequenos traços, esquecendo-se de alguma coisa, inventando outras. O passado era melhor? Não era esse o objetivo. O passado era outro. O passado não importava, porque só o que viria a acontecer, envolto em pálidas neblinas, lhe interessava. Por isso, deixou para trás os frascos de perfumes esquecidos, roupas amarelas, palavras empoeiradas, papéis velhos. Renovou-se.

Olhou para frente, inalou pela última vez a poeira do que havia recolhido. Olhou para frente. Com a leveza de quem tem os pés descalços, recomeçou. Diminuíra o peso em seus ombros. Como criança que se vê sozinha frente a um mundo desconhecido, refez o fôlego e passou a arregalar os olhos diante de tudo o que redescobria. Redescobria-se.

2 Comments:

At 2:09 PM, Anonymous Anônimo said...

Esse olhar para o passado... A gente reinventa tanta coisa.

 
At 2:13 AM, Blogger r a c h e l said...

que coisa linda essa frase:
"com a leveza de quem tem os pés descalços"...

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)