sexta-feira, setembro 01, 2006

Experimentalismo

Enfileirados na estante, os livros estavam lá. Ele olhava o mosaico colorido, formado ao acaso. Havia, porém, um certo nivelamento: os mais altos com seus pares, assim como os médios, e os mais baixos. A estante era bonita de se ler.

Ele sabia que havia muito a ser lido, e começou naquela tarde. Milhares, centenas de milhares de páginas. Desenhos em preto no papel branco - ou amarelado. Rabiscos de lápis em torno dos parágrafos.

Uma ou outra flor de hortênsia perdida no meio de um livro qualquer. Peças de um discurso que também era dele.

(Os dias na Ilha do Governador são quentes e cheios de sensualidade. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento quanto os portais da loja. Se você não me conhece, querido, não podemos ter diálogo, disse e deixou-o perplexo, com jeito de criança a quem se tira o doce. O ar condicionado não estava para tanto; é como se o frio lhe viesse de dentro.)

Tudo estava lá, mas ainda havia muita coisa. Ele se encontrava e se perdia nas páginas esparsas, nos fragmentos das falas de personagens e narradores e demiurgos que os leitores iam, sem querer, absorvendo. Ele era também uma personagem?

Foi quando ele novamente se deu conta, de modo mais nítido do que qualquer outra vez, de que ele também vivia pelas palavras alheias. Queria fazer viver, também. Mas sabia da impossível criação, do quase intransponível obstáculo. Apesar de tudo o que lera, sabia que algo ainda faltava. E, apesar de milhares, de milhões de palavras, havia ainda aquilo que se chamava: o inominável. Que é, freqüentemente, o indefinível.

Sentou-se, pegou um lápis e uma folha de papel em branco. Olhando o vazio plano, exigente, soube, de antemão, que não conseguiria. De volta à escola primária, num exercício de cópia, transpôs, caprichando na caligrafia, um poema qualquer de um livro qualquer de um autor qualquer. Sentiu-se, por instantes, dono daquelas palavras. Sentiu-se o próprio poema, sonoro, trabalhado. O lavor da pena. O alvor do papel. O vazio das palavras que ainda não foram criadas. A impossibilidade de escrever o que ele nem sequer havia sentido.

Repôs o livro na estante, e foi ver televisão.

1 Comments:

At 2:16 AM, Blogger r a c h e l said...

é... tem hora que a gente fica estático enquanto o papel (ou a tela) em branco nos desnuda. só quando a deixamos penetrar no mais íntimo de nós é que algo se liberta. nem sempre um bom texto, eu diria (no meu caso, ultimamente, tenho escrito lixo atrás de lixo), mas um texto necessário. às vezes eles dão certo. o segredo é tirá-los do fundo, mesmo à fórceps, porque mesmo o filho feio tem que sair.
beijoca!

 

Postar um comentário

<< Home

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)