quinta-feira, agosto 24, 2006

Pequeno fragmento de um miniconto inacabado

Sem sentir, ela deu um pequeno passo, que se seguiu de um maior, e de outro ainda mais longo. Sem ser sentido, o pirulito de morango ia se desfazendo em saliva e açúcar na língua da menina, e os olhos se dispersavam nas cores que se cruzavam à sua frente. A menina parou; e a saia surrada dançou no súbito vento provocado pela passagem de um caminhão. Alguns fios de cabelo voaram na direção do pirulito de morango que, ainda assim, a menina levou à boca, sem perceber. O céu, àquela hora da tarde, não era exatamente azul, pois a fumaça que subia das fábricas e de todos os carros, velozes, formava uma nuvem acinzentada. Sol havia, e ele castigava. Fazia muito calor, e a menina de saia surrada ia se desfazendo em suor e poeira.

Os carros zuniam perto do meio-fio, e o barulho aumentava ainda mais quando, com bastante freqüência, aproximavam-se do aeroporto os aviões cheios de turistas de olhos claros e pele rosada, ávidos pelo mar azul, mas que sequer suspeitavam aquela paisagem cinzenta. O avião zunia, e por vezes deixava algum rastro no céu. Aquele não era um lugar onde alguém ficaria: os turistas no avião, os motoristas velozes na pista. Trabalhavam, passeavam. E passavam. Também passaria a menina, mas não para longe - do outro lado da pista estava a sua casa, acinzentada pela poeira dos automóveis.

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)