terça-feira, outubro 10, 2006

Ele e ela: breve história de repetições


E então ele saiu de casa batendo a porta, sugando de dentro todo o ar que lá havia. O silêncio ficou insustentável; ela não conseguia respirar. Depois de cinco minutos alisando a toalha sobre a mesa, ela explodiu em choro, nervoso, sentido, evoluindo para os xingamentos. Não, ele não a merecia. Sim, ela poderia refazer a vida com um estalar de dedos. Afinal, por que ela estava chorando, mesmo?

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E então ele voltou para casa, sem bater na porta, levando pra fora a sombra que se havia instalado por duas horas. Ele não conseguia falar. Depois de vinte minutos lavando a louça do jantar, começou a assoviar a música que haviam escolhido como símbolo de seu namoro, de seu encontro - feliz? Ela vestiu no rosto uma expressão de terna perplexidade. O que foi deixando-a quente e, aos poucos, generosa. Sem que ele estalasse os dedos, ela caminhou até ele, abraçando-o. Choraram, silenciosos.

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Não, não foi a primeira vez que aconteceu. Também não foi a última. Também não foi a mais séria. No entanto, eles continuaram juntos, contrariando suas próprias expectativas. Eles trocariam tudo para chorar silenciosamente, tranqüilizando a procela dos momentos anteriores, mar suavemente ordenado. Em paz. Um soprando o ar diretamente para os pulmões do outro. Juntos, ainda que as portas batessem, ainda que freqüentemente. Apesar das silenciosas e momentâneas acusações. Sofrendo muito, eram venturosos na reconciliação. Não se imaginariam sem as brigas, sem as discussões: a calma só fazia sentido se houvesse a tormenta. E as duas existiam. Uma para a outra. Completando-se. Para que eles pudessem suportar o peso do amor, sem que os esmagasse. Para que eles não se sentissem perfeitos, e passassem a cobrar ainda mais de si mesmos. Para que o excesso de carinho que tinham um pelo outro não os anulasse, para que eles pudessem provar que eles não amavam, amando.

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Certo é que o amor também faz uso dos mais estranhos artifícios. Nem por isso mais certos.

1 Comments:

At 10:50 PM, Anonymous Anônimo said...

Tristeza e beleza... Será que é coincidência rimarem?

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)