segunda-feira, novembro 20, 2006

Visita

Ela me chegou fresca - começo de noite -, perfumada - quase dezembro -, cabelos molhados de banho e de chuva. Não havia lua no céu, mas o vento eriçava os pêlos da nuca que se mostravam ao mais sutil balanço do rabo-de-cavalo. Eu não posso, pensei. Ela se pôs ao meu lado, e o cheiro de terra e ducha morna me entranhou as narinas e foi me entorpecendo. Eu não posso, murmurei. Mas havia uma tepidez no que ela falava, as sílabas pronunciadas indolentemente... Eu não posso, suspirei. Ela sentou-se distante, voltei ao trabalho. As palavras confusas, sujeitos sem predicados, idéias fora do lugar. Havia um livro, e ele se abria sem sorrisos, e o perfume dela vinha da sala até mim, e a luz fria da tela do computador me fazia piscar excessivamente, e as letras já se embaralhavam sem fazer sentido algum. O cheiro. Ah, o cheiro. Chamei-me ao mundo. Peguei café - balde de água quente. "A jurisdição como expressão do poder estatal é uma só, não comportando divisões ou fragmentações: cada juiz, cada tribunal, é plenamente investido dela. Mas o exercício da função é distribuído, pela Constituição e pela lei ordinária, entre os muitos órgãos jurisdicionais..." Não, não dava. Ela ouvia música baixinho, cantarolando na sala. Não queria me atrapalhar. Como poderia trabalhar daquela forma?

Os prazos para cumprir. Tantas coisas sendo cobradas. E ela lá, no verão. E ela aqui, na verdade. E nós aqui. Os prazos para cumprir, os pêlos da nuca que se mostravam ao mais sutil balanço do rabo-de-cavalo. As sílabas indolentes, predicados sem sujeitos. Ela é uma só, não comporta divisões ou fragmentações - ainda assim, eu fitava separadamente os pés, as pernas, os braços, o colo, a nuca. Os pêlos da nuca, eriçados. Plenamente. Derramei café no teclado do computador.

Ela socorreu prontamente. Mais que depressa, limpou a sujeira que fiz, inclinou-se sobre a mesa, roçou sua coxa na minha. A chuva lá fora, os cabelos já secos cheirando a mato. Ela preferia que eu dissesse ervas, não gostava de "mato", achava primitivo demais. Delicioso cheiro de mato. Colei o nariz em seu braço, senti que os pêlos da nuca se eriçaram ainda mais. Pressenti. Ela disse que não podia. Que eu não podia. Os prazos para cumprir, tantas coisas sendo cobradas. O verão nos esperaria no dia seguinte.

Obedeci - balde de água fria. Mas as coisas continuavam sem sentido, transitivos sem objetos. Então me dirigi, devagar, à sala, a ela, ao verão. Ela, fingindo-se criança que supõe não ser notada. O mais antigo truque, o mais perfeito artifício. Ofereceu resistência, ainda. Disse, pronunciando mal as palavras, que deveria voltar ao trabalho - e eu a ignorei solenemente. Não a ela, mas às palavras que eram justamente o que ela desdizia, o inverso do que pedia.

Os prazos para cumprir. As mãos enfraquecidas pousadas sobre a almofada - silenciosos suspiros. Já as palavras voltavam a fazer sentido, sujeitos com predicados, ainda que entrecortados de vírgulas - esses suspiros. As coisas sendo cobradas. A tela do computador se fez compreensível.

E ela lá, no verão. Perto de mim, silenciosa. Os prazos para cumprir. A vida para viver.

2 Comments:

At 1:59 PM, Blogger Segunda Pele said...

As sílabas indolentes, predicados sem sujeitos.


ai, adorei isso!

beijos

 
At 1:39 PM, Blogger Angélica Castilho said...

Uau!
Muito doido... e profundamente belo pela imensa delicadeza! Pabéns pela igualmente bela escrita!
Beijo!

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)