terça-feira, janeiro 23, 2007

Mural

Não pretendia citar novamente tão cedo - é que há um certo "método", ou idiossincrasia de minha parte, que faz com que eu não transcreva textos de autores de que gosto muito sem um intervalo considerável. Isso, na verdade, é uma grande tentação, já que os textos que eu leio acabam sendo um pouco meus, também, e eles vão se fundindo às palavras de minha vida até que quase não haja distinção alguma. Os dois últimos posts, porém, me levam a citar David Mourão-Ferreira, um poeta português que conheci no último ano da faculdade, há uns bons sete anos (Deus, estou ficando velha!), e que me marcou profundamente. Comprei sua Obra poética numa livraria do Porto - foto acima! -, lindíssima: Lello & Irmão (tenho a sacolinha plástica até hoje). Comprei também um volume de sonetos da Florbela Espanca, outra autora querida minha. Boas recordações! Mas, voltando à poesia, cito David Mourão-Ferreira para um possível exercício de intertextualidade:

TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

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Acho bonito. Lembra-me "Samba e amor", do Chico. Lembra-me tantas coisas no tal exercício de intertextualidade.

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Poderia ficar transcrevendo David Mourão-Ferreira incansavelmente. Acho belíssimos os poemas. Para aguçar a curiosidade de quem não o conhece, cito mais um:

ILHA

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que precorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

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Bonito. De novo. E tanto mais há no livro... Nos livros todos. E poderia ficar citando, citando, citando... Sempre há algo a se descobrir, e a se redescobrir. Como David Mourão-Ferreira.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)