quinta-feira, março 08, 2007

Obscenidades

As grandes livrarias, modernas, são lugares tentadores, coloridos, perfumados. Agradáveis. E, ainda, têm conteúdo. Um conteúdo heterogêneo, mas conteúdo. É claro perceber uma mudança na fisionomia da pessoa que, da calçada, transpõe a porta envidraçada. O olhar com alguma forçada concentração, simulada atenção. Leitura de orelhas de livros geometricamente organizados sobre balcões. E, depois, a ida quase casual para a seção de auto-ajuda.

Não há grandes livrarias em Petrópolis. Aliás, quase não há livrarias em Petrópolis. Mas há uma filial de uma grande rede, cuja loja na cidade deve ser equivalente à vigésima parte da Fnac do BarraShopping. Mas não faltam livros de auto-ajuda. Nem o certo ar dissimuladamente concentrado que as pessoas adquirem quando cruzam a fronteira do território cheio de conteúdo.

Mas não é sobre isso que estou escrevendo. Estou só contando um pequeno episódio em que observei algo realmente curioso. Fui à livraria comprar "O movimento pendular", do Alberto Mussa - a propósito, um ótimo livro, diferente de tudo o que ja li antes - e, enquanto esperava que a moça que me atendeu olhasse o preço do livro, deixei o olhar cair sobre uma mesa à esquerda, onde se empilhavam, organizadamente, as mais diversas e coloridas obras. Uma capa preta com letras brancas: "O doce veneno do escorpião". Já faz alguns meses que a referida obra foi lançada, comentada, resenhada, lida, ganhando manchetes e destaques de jornais e revistas - para o bem e para o mal. Principalmente, para o mal. Meses depois, ninguém mais parece dar pela existência dele. O que é totalmente natural e, mais que isso, previsível.

Abro o pequeno volume. Há qualquer referência ao fato da dupla personalidade (?) da escritora (?): Raquel, a menina; Bruna, a mulher. E, nos trinta segundos em que a atendente pesquisa o preço do livro do Mussa, leio os parágrafos iniciais da primeira aventura narrado no livro.

Como todos sabem, o livro conta a história de Bruna Surfistinha - a tal Raquel sei lá das quantas, a tal menina -, jovem de classe média que, depois de abandonar a prostituição, decide compartilhar suas experiências. Todos imaginam que tipo de coisa se pode encontrar num texto com essa proposta.

E lá estão os primeiros parágrafos da primeira aventura narrada no livro: nada que surpreenda, até a segunda página. Há a chegada de um homem, um início de conversa, um início de função. E é aí que chega a surpresa: deparo-me com uma frase composta por, entre outras palavras, "c..." e "bu..." . Isso mesmo. "C..." e "bu..." . Em um livro teoricamente escrito por uma ex-prostituta, em que se narram os acontecimentos de seu dia-a-dia.

O livro do Mussa custava uns trinta reais - a leitura foi interrompida. Mas algo me perturbava. Quem havia escrito a tal frase? Raquel, a menina? Bruna, a mulher? Drama. Fiquei chocada com a delicadeza da autora-narradora-personagem que tenta preservar seus leitores - e a si mesma? - de um vocabulário tão chulo. Apesar do restante do livro. Apesar de tudo.

Errado estava Rubem Fonseca, que colocava os palavrões inteiros em seus contos. Afinal, "Feliz Ano Novo" é realmente chocante. Tivesse ele escrito "pu...", "me...", "fo...", e talvez nem tivesse problema com a censura. Afinal, o palavrão é realmente algo chocante, algo vil. Não a violência. Não a prostituição. Não a narração escancarada de aventuras sexuais com o simples propósito de narrar escancaradamente as aventuras sexuais. O óbvio.

Seria eu conservadora demais?

Depois disso, comprei minha indulgência trazendo, junto com o livro do Mussa, um volume do Fernando Pessoa, que dividia espaço com a tal primeira produção literária (?) da menina Raquel, da mulher Bruna.

Ainda bem que as livrarias são lugares coloridos e cheios de conteúdo. Ainda que heterogêneo.

1 Comments:

At 11:28 PM, Blogger Nelson said...

E pensar que seu flerte(!) com a pseudo obra literária durou duas páginas. Tenho desdobrado meus atrofiados neurônios aqui na vã coragem de digerir Nietche, mas não em renderei porque "c..." e "bu..." nem no Domingão do Faustão dá pra aceitar.

Por aí jaz a Cultura Nacional

 

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