quarta-feira, dezembro 06, 2006

Altiora

Sem que nada dissesse, ele abriu a porta, deu um passo à frente, e bateu-a atrás de si, fazendo vibrar o ar já parado havia tanto tempo, fazendo dançar a poeira sobre a madeira que, um dia, fora polida. Chamava-lhe o vento lá fora; e o mundo além da casa era tudo o que ele não era, ou tudo o que ele deixara de ser: pernas de calças se entrelaçando nos varais das redondezas, grama pesada de chuva, mosquitos fazendo-lhe sombra. Cheiro de árvores - quais? - que se espalhava e penetrava os pulmões pelo nariz e pela boca, a largos goles. O mundo inteiro, meu Deus. O mundo inteiro. Tudo o que não podia ser contido ou represado ou sufocado estava lá, quente e inseguro. Poderia cair no segundo seguinte, e a queda seria apenas o choque no chão úmido, talvez a dor de secretos espinhos. Ele estalava ao vento observando o bambuzal revolto. O sol queimava gostoso, e dava-lhe um calor de dentro para fora, um calor que poderia ser ouvido ao longe, gritando a todo fôlego que sim, ele estava vivo. O calor que não havia dentro da casa glacial. Não um abafamento; não era isso: eram-lhe os órgãos inchando dentro de si enquanto a pele se arrepiava com o vento quase fresco. Era uma delícia respirar, e engolir o ar como quem bebe água, sedento, e passar na pele os dedos desabituados a sentir. Sim, eu estou vivo - mas surpreendeu-se ao ver que uma gigantesca formiga lhe fizera sangrar o dedão do pé.

Ele era sangue, calor, pêlos, suor, poeira que o vento levava para os lados do bambuzal. Ele era o cheiro que não queria mais sentir, mas era o cheiro: metal enjoando o estômago sempre vazio, só a pele embebida como algodão. Amarelando-se. Descolorindo-se. As veias mais azuis que os olhos. As veias mais azuis que o azul cheio de nuvens mutantes com o vento veloz. Ele vivia a custo, pesado em seu corpo esquálido. Arrastava-se, leve.

E as montanhas, lá na frente. Ele as conhecia? Só de longe, assustado. A vertigem da altura sempre o inibiu. Mas, naquele momento, parecia não fazer mais sentido tanta distância, ele atraído pelos tons verdes e azuis e as sombras acinzentadas da nuvem de chumbo que a sobrevoava. Lá o vento era ainda mais forte... Lá o mundo mudaria ainda mais: do topo ao mar, o trajeto dos olhos o levaria para... para não se sabe onde. Para o distante só imaginado.

A distância intransponível. O sol queimando forte, o vento curvando o bambuzal. Os sons que ele só suspeitava em sua existência parada, metálica, glacial. Os sons de que ele se lembrava, passado muito distante. Os sons, o vento, as cores, as nuvens com que ele sonhava. Não mais o teto branco-esverdeado, imutável, não mais o silêncio interrompido somente pelo sinal de vida que a máquina emitia. Ele se desequilibrava, descalço no chão irregular. Mas como era bom não estar firme, constante - e uma nuvem escura cobriu o sol por uns minutos.

E então ele decidiu ir às montanhas. Conhecê-las, prová-las, sorver seu ar, ser sua cor - ao longe o veriam e o reconheceriam como parte delas. E não era isso que ele era? Não mais o cheiro glacial... Voltava ao vento que desordenava os cabelos, ressecando-os. Voltava ao sol que marcava sua pele, ardendo. Voltava.

Sôfrego, caminhava devagar. Pesava o mundo a seus pés. O fôlego esvaindo-se, chegando a ilusão de que se rarefazia o ar. "Quanto maior a altitude, mais rarefeito é o ar" - nunca se esquecera das palavras da professora que não sorria. E não entendia o que era rarefeito; só naquele momento podia sentir - a experiência tudo ensina. Respirava com dificuldade, o ar rarefeito. Os pés sangravam - formigas e espinhos. Enevoava-se a vista - eram as nuvens. Obrigou-se a subir mais. "Altiora semper petens", e via o brasão estampado no bolso da camisa branca em que faltava um botão. Altiora, entrecortava a sentença buscando o fôlego na névoa que o envolvia, semper, cobiçando o topo da montanha em que ele seria a ventania, petens... Altiora, o vento... O vento, o sol, as alturas, a grama, o chão, os secretos espinhos. Ele estalava ao sol, no pico, no alto, o trajeto dos olhos o levando, distante, para além do mar que se via dos abismos.

Quando o enfermeiro foi levar os remédios do meio-dia para Artur, pensou estar sonhando ao ver a cama vazia, soltos os tubos à volta do leito reclinado, parada a luz verde na máquina que dizia se ainda havia vida. Passara anos naquele quarto, ninguém diria que ele ainda era capaz de andar, de sentir, de viver. Encontraram-no a cinqüenta metros da porta da casa onde ficava, esquecido da família, os olhos abertos tentando ver através da bruma que o envolvia. Altiora. Ele havia alcançado.

1 Comments:

At 12:45 AM, Blogger Nelson said...

Aflitivo, porém envolvente ...

corajoso Artur.

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)