quinta-feira, dezembro 28, 2006

Confidência do petropolitano

Por toda a minha vida morei em Petrópolis. Principalmente, nasci em Petrópolis. Vá lá, talvez Petrópolis não seja um nome tão sonoro quanto Itabira. Talvez carregue mais “pompa e circunstância”, diriam os saudosos do passado dourado escondido atrás das paredes descascadas dos prédios históricos – embora não se saiba exatamente onde se encontram as tais pompa e circunstância atualmente.

Caminho pelas ruas da cidade: vejo meus conterrâneos, olho-me ao espelho. Petrópolis é um entre-lugar, um meio-termo: inveja-se a irreverência do carioca, simula-se o distanciamento do europeu. Ambas as tentativas são frustradas. Por isso, orgulhamo-nos das temperaturas baixas no inverno: provamos que fugimos ao estereótipo de Brasil tropical, do calor que nunca cessa. Por isso, orgulhamo-nos das temperaturas altas no verão: provamos que também temos um pouco de Rio-quarenta-graus que é propagado nos quatro cantos do mundo.

E há o ruço, e há a chuva incessante: há a neblina constante que embaça as retinas fatigadas ou não. Isso porque estamos à beira do abismo, alto da montanha – abaixo, o mar. Riram de mim quando disse que não gostaria de deixar a cidade, que não gostaria de morar distante da praia. Apesar da altitude, avista-se a baía das bordas recortadas a que recorremos quando queremos ver o pôr-do-sol, de fato (aqui o sol sempre some antes que o céu mude de cor). Estamos no meio do caminho entre o mar e as minas. Sim, as Gerais. Somos as primeiras montanhas que se avistam da entrada do Rio que não é rio.

Talvez o que mais defina Petrópolis seja o meio-termo. E como os petropolitanos se ressentem desse aparente equilíbrio! Tudo o que qualquer jovem nascido por aqui quer é estudar no Rio. A cidade, que não é tão pequena, parece vila antiquada pelos que clamam pela brisa do mar carioca. No entanto, há um velado sentimento de superioridade em relação a cidades vizinhas menos populosas e desenvolvidas. Por isso, mesmo uma notícia desagradável no jornal pode ser repetida com algum sabor nos salões e bares da cidade: a cidade não é mais a mesma, a cidade está crescendo, temos também alguma violência. Não somos tão interioranos como presume a metrópole.

Afinal, nossa terra foi escolhida: por aqui passou o Imperador, que se encantou com o clima, com o lugar, com as montanhas e suas sombras. Aqui o filho do Imperador construiu sua residência de veraneio, e aqui passou muitas longas temporadas. Aqui os turistas passeiam em vitórias, sentem-se no século passado, muito embora os cavalos maltratados disputem o espaço das ruas estreitas com os carros modernos e barulhentos de buzinas incessantes. Os pássaros cantam suspensos no emaranhado dos fios de incontáveis postes. A poeira das ruas movimentadas embaça os vidros das janelas imperiais.

Há algum ranço de monarquia por aqui. Conversas em que se reverencia a família real. Orleans e Bragança: havia um príncipe que passeava a cavalo em seus domínios republicanos. Lenda? Há quase um sentimento messiânico de que um rei poderia mudar o país e, principalmente, a cidade. Ao menos não se fala de Dom Sebastião por aqui, mas sonha-se com esse passado de luxo em que Petrópolis era talvez o lugar mais badalado do Brasil.

Ah, e o passado... O quanto Bandeira não escreveu por aqui? E Tom Jobim, e Vinicius? E “Águas de março”, que diz-se que também nasceu entre estas montanhas? O quanto não carregamos... No momento, o orgulho vem principalmente de banda adolescente e de dupla de humor negro que aparecem na MTV. Saudades da década de 50, mesmo sem tê-la vivido... Estamos na mídia, estamos na novela das oito. Mas essa Petrópolis não existe, ou existe só para turista.

É assim em qualquer lugar, todos dirão. Só os turistas conhecem esses lados positivos dos lugares. Por isso caminho, muitas vezes, ávida desse sentimento de novidade que quem visita outras paragens estampa nos olhos. Por isso faço percursos diferentes, por isso aguço o olhar, o olfato. Por isso observo essas pessoas que vêm e vão agitadas ou que permanecem nos bancos das praças vendo a cidade se metamorfosear, tal como Pedro II ao centro de sua praça.

De resto, reclamo das obras, reclamo do trânsito, do barulho, da decadência crescente que toma a cidade a olhos vistos. Com elegância? Talvez. Talvez carreguemos, nós, petropolitanos, algum ar blasé quase monárquico. Talvez carreguemos o suposto requinte de europeus: os colonos alemães que povoaram a cidade, artesãos, agricultores nada sofisticados que nos legaram olhos claros. Tentativa frustrada de Europa nos trópicos, tentativa frustrada de litoraneidade na montanha. Nós, o meio-termo.

Caminho pelas ruas da cidade: vejo meus conterrâneos, olho-me ao espelho. Observo as mudanças gradativas que transformam os lugares e as gentes. Observo minhas próprias mudanças, vejo minha gradual aproximação do quente Rio de Janeiro – amplia-se o sentimento do mundo, que é grande, que é vasto, que é maior que a cidade à beira-mar. Que é maior que meu coração. Nele cabem também outros lugares que também me compõem. Mas o que há de imutável em mim, em nós, na cidade, permanece conosco: nascer em Petrópolis determina uma vida inteira. Assim como nascer em qualquer outro lugar.

2 Comments:

At 3:30 PM, Anonymous Anônimo said...

Princesa Suzana! rs

isso ficou mais do que bom!!!

mas muito mais mesmo!!!

por favor, entregue-se às letras com toda a sua alma, tá?

 
At 4:10 PM, Anonymous Anônimo said...

Houvesse sido dada a mim a graça de escrever sobre Pet, teria talvez escolhido palavra diversa, não "determina". Só que não me ocorre mesmo outra mais precisa. É, acho que preciso vencer essa minha implicância com "determinar".
Gracias por ter tirado do meu peito o que eu, há uns dois anos, venho sentindo sobre a cidade.

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)