quinta-feira, dezembro 21, 2006

História qualquer

João Inocêncio da Silva tinha vinte e oito anos, era alto, mulato, de olhos calmos, e corcunda. Principalmente corcunda. Desde que se entendia por gente, o que mais entendia era o chão: a cabeça pesando para baixo, as costas como dura parede. O chão, sempre - o eterno conhecido. Taciturno era João Inocêncio - não havia outra forma de ser. As pessoas sempre vistas de outro ângulo, nunca um cara-a-cara. E poucos sabiam a cara de João. No colégio, não sabiam se era concentrado nos deveres ou se distraído nas explicações: sempre com os olhos voltados no caderno. Estudou até a oitava série.

João Inocêncio da Silva, 28 anos, 1,87 m, pardo, olhos negros, com acentuada cifose, empregou-se numa lanchonete localizada no subúrbio do Rio. São grandes e distantes os subúrbios do Rio, fragmentados como sonhos ao amanhecer: do subúrbio onde morava ao subúrbio onde trabalhava, levava longas duas horas em dois ônibus lotados. Sempre de olhos calmos, o mulato olhava para o chão, a cabeça pendendo. O tempo se arrastando, engarrafado, a lanchonete colorida que parecia nunca chegar. Mas chegava.

Às duas da tarde, estava João Inocêncio alinhado em seu uniforme de camisa xadrez e calça social, boné direito na cabeça enviesada, olhos no chão, procurando o que limpar. Materiais de limpeza sempre a postos, sempre muito trabalho a fazer: grande era a sujeira deixada pelos clientes barulhentos que tinham pés, mas não tinham rosto. As mesas limpas, o chão lavado. A cabeça pesando, mostrando a direção do chão. A menina correu e derramou o suco todo; os adolescentes mal-educados fizeram guerra de batata frita de uma mesa para outra - e lá ia ele, calmo, taciturno, limpar a sujeira deixada pelos clientes. Sempre um brinco a lanchonete. Incansável, ele esfregava o pano úmido deixando imaculado aquele chão quase imundo. Não tinha amigos, mas cumpria com capricho o seu papel.

Às onze da noite, João Inocêncio esperava o ônibus de volta para casa. Quando saía, o trânsito era leve, e o tempo de viagem era reduzido à metade. Já sem o uniforme, ele mostrava o cansaço acumulado: a camisa de malha surrada moldava-se às costas que pendiam ainda mais, o peso das horas esmagando-o contra si mesmo.

Pois foi numa noite de dezembro que João Inocêncio olhou para a moça que estava sentada no outro lado do ônibus sonolento. Sandálias de saltos largos, pernas fortes, saia desfiada à metade da coxa, blusa rosa gritando na luz débil, pulseiras coloridas de cristal, unhas longas de um marrom salpicado de estrelinhas, argolas nas orelhas que prometiam perfume vindo da nuca revelada pelo coque improvisado com um lápis, cabelos tingidos de rubro castanho. Escutava qualquer música num aparelhinho e tinha os olhos instavelmente abertos.

Ele levantou a cabeça, tentou inflar o peito. Doeu. Àquela hora da noite, cansaço acumulado de um ano inteiro, era difícil não olhar para o chão. No entanto, aquela moça o obrigava a endireitar-se, e ele sentiu a tortura do aparelho ortopédico que a mãe, um dia, havia insistido para que ele usasse. Ele a havia decepcionado. Choravam em silêncio, a incompreensão de que ele não queria deixar de olhar para o chão. Ele já estava acostumado a encarar os pés das pessoas, quando muito, a cintura, e o aparelho era um castigo duplo. Um peso que seus olhos não poderiam suportar. Silencioso, abandonou o tratamento. A mãe abandonou a causa. Silencioso, sempre, João Inocêncio cresceu muito e olhava cada vez mais para o chão. Mas a menina do outro lado do ônibus o puxava, o endireitava, o alinhava. Coluna reta, noventa graus. Esforço, dor, suspiro mudo. Olhou para o lado com os olhos sofridos.

A menina nem deu por si. Àquela hora da noite, carregando o peso de uma semana inteira de trabalho, semana que antecedia o Natal, clientes barulhentos, exigentes e mesquinhos, ela estava exaurida. A música que tocava a embalava. Mas pôde ver que se aproximava o lugar em que saltaria, e começou a se aprumar.

Era o momento. Desperta, agora, João Inocêncio tinha chances de ser visto. Olhava-a, timidamente ostensivo, tentando disfarçar a dor no peito, nas costas, na nuca. A camisa de malha surrada parecia outra - simulação de força que emanava dos ombros que alargava. Respiração ritmada, mas rápida, olhos fixos.

Ela levantou-se rápida, puxou a corda, deixou cair uma revista que carregava consigo. Caiu aos pés de João Inocêncio. Imediatamente, ela foi em sua direção, buscando o que perdera. Imediatamente, ele curvou-se para apanhar o objeto - a chance de que precisava. Seus olhares se cruzariam, certamente. Suas mãos possivelmente se tocariam. Ela sorriria e mostraria os dentes tortos e brancos. Ele diria timidamente seu nome, e ela lhe daria seu telefone para que eles marcassem um encontro futuro.

Ele curvou-se para apanhar a revista - e efetivamente o fez. No momento em que se erguia, porém, o aparelho ortopédico da infância pesou-lhe, envergou, oprimiu. Tentou. Virou-se para o lado. A cintura da moça - fina, a blusa rosa que não chegava até o cós da saia, pedaço de barriga que sugeria um piercing no umbigo. Um cheiro doce e forte. Pêlos grossos e dourados na coxa direita.

Ela percebeu o problema de João Inocêncio, e abaixou-se para pegar a revista. Pegou. Os dedos roçaram seu braço, e ela agradeceu, pedindo desculpas. Uma palavra incompreensível pronunciada, frustradamente. Ela olhou para ele, buscou seus olhos, mas ele continuava olhando para o chão. Imóvel. Taciturno. Dolorosamente.

João Inocêncio conseguiu olhar pela janela quando a moça saltava na calçada deserta. Ela não acompanhou o ônibus, não o buscou através da vidraça suja de poeira e fuligem de ruas. Ele a acompanhou o quanto pôde, o quanto seu pescoço permitiu.

Vinte minutos depois, João Inocêncio saltou do ônibus. Caminhou pela calçada conhecida, encontrou os mesmos buracos nos caminhos. O chão, sempre. A casa de luzes refletidas no piso.

João Inocêncio da Silva, 28 anos, 1,87 m, pardo, olhos negros, com acentuada cifose, deitou-se e sonhou com a moça de cabelos rubros em coque perfumado. Música alta no sonho. Revistas chovendo de um céu lá no alto. Lá no alto, ele olhava. E voltava os olhos para o céu, e via o céu azul e os olhos verdes-azuis-castanhos da moça com quem não falara. Ela era linda no sonho - ainda mais bonita que a lembrança da noite. Deixava de ser corcunda naquela madrugada, e adquiria uma firmeza desconhecida em sua voz. Ela cedia ao seu olhar e caminhava com ele, mãos dadas, cabeças aprumadas, encarando tudo o que aparecia à frente. No sonho.

João Inocêncio acordou às oito da manhã, tomou o café fraco deixado pela mãe que fora trabalhar, e começou a limpeza da casa pequena e empoeirada. Às onze, começava a arrumar-se para o trabalho. Esperava rever a moça na volta para casa - preparou-se com o perfume do irmão mais novo. Mais tarde, limpou o mesmo chão dezenas de vezes.

Mas a moça não apareceu aquela noite, nem na noite seguinte, nem em noite alguma. João Inocêncio sonhava com aquela cintura, com o toque dos dedos em seu braço, com os pêlos dourados da coxa direita. Nunca mais a viu. Olhava, sim, cada vez para o chão, e ele se aproximava com o peso dos meses. No chão ele se reconhecia. No chão ele a encontrava, e ouvia o pedido de desculpas que ele não conseguira responder. Havia muito a ser limpo, ainda, o chão já conhecido. Era o seu mundo: não deveria ter tentado sair dele. O chão. Haveria muito a ser limpo pelos anos seguintes e taciturnos. E só.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)