quarta-feira, março 28, 2007

Flores, frivolidades e literatura

Já faz semanas - posso dizer meses, acho - que o verde do morros anda salpicado de tons roxos e amarelos vibrantes. Lado a lado, vejo que essas cores combinam entre si. Mais espeçadamente, paineiras com suas flores lânguidas e pálidas, quase românticas. O que me chama atenção, no entanto, são o roxo e o amarelo: segundo sempre ouvi em minha infância, quaresma e aleluia. Quaresmeira, como acho que é o correto. Aleluia, nome repetido pela minha avó, e pela minha bisavó, e pelas alguém do fim do século XIX. E antes. As duas árvores se vestem de flores depois do carnaval. O sofrimento roxo, a ressurreição amarela. E essas cores marcam a aproximação da Páscoa, tal como um cheiro peculiar indica que o Natal está perto. É fácil sentir as épocas do ano.

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Tentei descobrir que bendita árvore é a minha bendita aleluia, espetacular desde não sei quando. Agora elas já estão se despindo; algumas solitárias resistem, no meio do verde, exibindo os flocos intensos e amarelos. Descubro, afinal, o nome: "Cassia Multijuga", ou Cássia-Aleluia, ou Aleluia, para os íntimos. E cito Clarice, Em Água viva: "É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro de arena."

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Mas não vou falar sobre Clarice. Não agora. Que fique o trechinho aí; já é suficiente.

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Também há os cheiros da Páscoa. Em minha infância - e até uma parte de minha adolescência, devo confessar - preparava ninhos com fitas e laços coloridos, e o papel que embrulhara os ovos nos anos anteriores era cortado em tirinhas finas, brilhantes, fazendo um ninho macio para o chocolate vindouro. Mas não era só isso: no sábado de Aleluia, ansiosos pelos chocolates, todos colhíamos flores para cobrir as tirinhas - um verdadeiro tapete. As flores roxas das quaresmeiras eram presença garantida, assim como uma florzinha branca bastante desinteressante, mas que aparece nas matas nessa época e tem um perfume delicioso. Os quilos de chocolate amassavam as pétalas e o cheiro ia se intensificando - os ninhos ficavam no quarto, e era inebriante. Não tinha coragem de mexer nele: queria manter a arrumação, o colorido, o perfume. O chocolate, naqueles momentos, era o menos importante.

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Uma de minhas primas, muito querida, concordou comigo que deveria haver um perfume que tivesse aquele cheiro de Páscoa - ou daquela flor branca desinteressante. Eu disse a ela que criaria um perfume, e ele teria o nome de "Pascale", ou algo assim. Ingenuidade infantil. Um punhado de anos depois, descobri o cheiro em frasco, e ele é hoje um de meus perfumes mais usados. "Floral amadeirado, com notas de freesia, canela, rosa aquática, peônia, âmbar e almíscar. Para a mulher elegante, sensual, alegre e segura de si." Discordo. Eu o uso para me lembrar dos tempos da minha Páscoa de criança.

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Hoje me perfumei saudosamente.

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Pra que a meia dúzia de leitores - talvez menos - não se coce de curiosidade, digo antes que me perguntem: é o L´Eau d´Issey, feminino. Delícia! E o masculino também é um espetáculo.

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É que eu também tenho que dar vazão ao meu lado frívolo.

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Outra hora volto a falar de Clarice. Ah, ela também falava muito sobre maquiagem.

2 Comments:

At 10:56 PM, Blogger Leonardo Barros said...

Gosto de ler seus pensamentos soltos, essa forma de escrever que muito me atrai mas não consigo! Que bom que descobriu que a Aleluia é realmente a aleluia, dê uma passada pela barão e veja a paisagem que se constrói ao longo das margens! É encantador!

 
At 11:02 PM, Blogger Leonardo Barros said...

certa vez você fez um comentário em meu blog, e apenas vi hoje. responderei.
Sim eu gosto muito de Los Hermanos, eles têm a capacidade de me fazer pensar em cada parte da música, da mesma forma que Nando.
beijos

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)