segunda-feira, março 19, 2007

Joana Joana

Joana. Joana, venha cá, preciso te contar uma coisa. Não se faça de surda, não finge que está dormindo: eu sei que você está me escutando. Anda, Joana, não finge. Escuta. Eu sei que você está bem. Ou melhor, eu sei que você está quase bem. Eu também ainda não estou cem por cento, minha cabeça está estourando, e eu não sinto meus pés. Mas escuta, Joana: seus cabelos estão muito bagunçados; vou dar um jeito neles. Ainda tem algum cheiro de cigarro. Bem que você fala que não gosta de ir a essas boates lotadas. Minha camisa também está fedendo, está sentindo? Logo a camisa azul que você me deu. Não sei como ainda não me deu um tapa por ela estar manchada. Tudo bem, essa mancha sai. Nada que água e sabão não tirem. Nem o cheiro do seu cabelo. Está tão bonito o seu cabelo, mesmo bagunçado. Escuta, Joana, preciso te falar. Espera um pouco, não dorme agora. Escuta. Eu falo baixinho, prometo não te perturbar. Mas é que eu tenho que falar alguma coisa, e não tem ninguém aqui me escutando, Joana. Prometo falar baixinho. Pode ficar dormindo. Eu sei que você não queria sair hoje. Mas mesmo assim você estava tão bonita, o vestido que você pegou escondido no armário da sua irmã. Você se maquiou e ficou tão linda, ficou parecendo mais velha. Sei que você gosta de ouvir isso. O pior é que o vestido da sua irmã também está manchado. E esse é daqueles caros, não é, Joana? Vamos logo logo pro shopping, a gente compra outro igual, ela nem vai perceber. Não: a gente compra um mais caro, mais bonito, ela vai ficar até sem graça. Até porque ela vive falando que eu não presto, que não é pra gente ficar junto, que isso, que aquilo. Aí o cunhadinho vai dar pra ela um vestido muito, muito mais caro do que todos os outros que ela tem. Todos os outros juntos. Eu quero ver a cara dela. Ah, mas deixa isso pra lá. Você ficou linda nele, mesmo, muito mais bonita que ela. Está linda, mesmo com o vestido manchado. Tá vendo, já estou arrumando seu cabelo. Eles estão macios. Só estão fedendo um pouco, mas estão lindos. Ah, valeu a pena, não valeu? A gente bem que se divertiu hoje, Joaninha. Adoro te chamar de Joaninha, adoro a sua cara de quem não gosta de diminutivo. Tão lindinha a minha Joaninha, tão novinha, tão pequena, tão lindinha. Querendo parecer mais velha, querendo parecer ter dezoito anos. Quando tiver dezoito anos vai querer voltar pros dezesseis. Talvez não com dezoito, mas quando tiver vinte, eu tenho certeza. É uma idade linda. E você está tão linda, Joaninha. Nem parece que passou a noite inteira acordada. Viu, nem borrou a maquiagem, como você estava com medo. Eu sei, eu não deveria ter falado aquilo com você. Mas você me perdoa, não é, Joaninha? Isso, fica de olhos fechados, eu sei que você está me escutando. Você me perdoa por ter falado aquilo tudo, não é? Mas, você sabe, tinha aquele monte de marmanjo perto de você, e você sorrindo, eu sei que você não fez por mal, mas você sabe... Desculpa. Prometo que não faço mais. Você estava mesmo linda, parecendo mais velha no vestido da sua irmã. Desculpa por ter exagerado na bebida, também. Desculpa. Prometo que não vai acontecer mais. Estou com dor de cabeça, queria que parasse. Vai passar. E você, tá sentindo alguma coisa? Está com o rosto tão lindo, com a maquiagem perfeitinha... Você passou direto, ninguém parou você na porta da boate. E ninguém ia parar. Acha que alguém ia parar você, comigo do seu lado? Nada. Eles sabem com quem podem mexer. Ah, não importa. Você estava linda, dançando, dançando, dançando feliz. Eu fiquei vendo de longe. Eu via como você estava linda, feliz, dançando. Todo o mundo olhava pra você, Joana. Tão linda. Tão loirinha, tão adulta. Eu fiquei te olhando, de longe. Desculpa eu ter falado aquilo tudo, mas tinha muito homem perto de você. Desculpa, você chorou, né? Mas fica tranqüila, a maquiagem nem está borrada. Depois, também, você fez o quê? Eu nem vi, tem uma hora que eu não me lembro direito das coisas, eu estou confundindo tudo, sabe? Isso é tão estranho. Você vai ter que me ajudar. Ah, lembrei. Lembrei mais ou menos. Depois eu encontrei você na porta, não foi? Desculpa, eu briguei com você de novo. Mas eu nem me lembro direito por quê. Ah, não importa. Se eu não me lembro foi porque não foi importante, não é verdade? E você ainda queria ficar longe de mim... Até parece que eu ia te deixar sair sozinha daquele lugar, voltar sozinha pra casa. Tá maluca? Tão linda a minha Joaninha, não ia mesmo ficar andando sozinha de madrugada. Não tem táxi, não. Eu não te busquei? Eu te levo, deixa comigo. Não foi o que eu te falei? Eu coloquei até a música que você adora. Ah, Joana, me deu uma vontade louca de te beijar, minha linda. Linda maquiada, nesse vestido. Mesmo com o cabelo bagunçado e fedido. Não se preocupe, sai tudo com água e sabão. Eu prometo que vou te lavar, você vai ficar feito nova. Mais novinha ainda. Uma criança. Uma criança loirinha, tão linda, tão adulta. Pode ficar dormindo quietinha, eu cuido de você. Eu só quero chegar logo em casa. Eu só quero te deixar logo em casa. Mas não se preocupa, logo a gente sai daqui. Logo alguém ajuda a gente. Joaninha, eu prometo que a camisa que você me deu vai ficar linda. E o vestido da sua irmã também, e se não ficar, eu compro outro muito mais caro. Joaninha, vai ficar tudo bem. Daqui a pouco alguém tira a gente daqui. Desculpa eu ter exagerado. Não queria brigar com você, mas você me entende, não entende? Enquanto isso eu ajeito os seus cabelos. Daqui a pouco o cheiro sai. Daqui a pouco a gente sai daqui. Eu te prometo, Joana, eu tenho que te falar isso, eu prometo que eu não brigo mais com você. Eu prometo que não vou mais exagerar na bebida quando a gente sair. Não vou mais obrigar você a vir comigo. Desculpa, Joana, eu exagerei. Mas eu prometo que o vestido vai ficar limpo. Os seus cabelos também. Eu nunca vou me esquecer dos seus cabelos, Joana.

3 Comments:

At 9:11 AM, Blogger caeiro said...

putz, tu consegue imprimir uma carga intensa no texto. da-se a sensação da merda que aconteceu com a pobre joana. texto pesado mas muito bacana.

 
At 11:56 PM, Anonymous Anônimo said...

Tô muda.

 
At 9:06 PM, Anonymous Anônimo said...

Não tenho irmã...

(:

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)