segunda-feira, abril 16, 2007

E por fim

Meu Deus, eu disse, eu disse e não consegui continuar a frase que irrompeu alta e ilógica de minha garganta. Os olhos estavam fixos no dia lá fora, um dia de temperatura indefinível, que me oprimia, pesadamente: nuvens densas e velozes correndo no céu de pequenos azuis embaçados, uma poeira de anos que se acortinava diante dos meus olhos. Meu Deus, e tudo o que conhecia era aquilo, o vale debaixo da janela, as montanhas ao longe e ao vento que não chegava a balançar as folhas mais pesadas dos arbustos mais baixos. Tudo o que conhecia eram aqueles limites, e não mais que os limites. Eu, no meio. Eu, o centro. Tudo tão à volta, tão protetor, ameaçando-me. Redoma. Tão certo, tão fixo. O centro, as nuvens que me rodeavam. Puxei o ar com a boca, repetindo, tantas, tantas vezes que o ar me foi demais e eu me senti mal. Meu Deus, eu disse, e não consegui olhar mais para o vale lá embaixo, não consegui mais olhar o dia lá fora, e tudo o que vi foi um imenso esmaecer do que estava diante de mim, perdendo a nitidez, perdendo as formas, as cores, os gritos vermelhos e amarelos e azuis e verdes entre a poeira dos anos. Tudo envolto e silenciado por uma repentina névoa pesada que me jogava contra a parede tão sólida, tão dura e serena. Meu Deus, eu disse, e minhas pernas não suportaram mais forjar o equilíbrio, e eu escorreguei, liquefazendo-me junto ao piso de cerâmica desbotada. Veio-me um frio do fundo de mim mesma: as mãos se umedeceram mais que os meus olhos fixos e perdidos. Nenhuma brandura, só a violência dos espaços vazios dentro de mim e de meu mundo que tomavam conta de todo o resto, e o vazio branco era assustador e calmo, e o abismo branco era eu mesma, inteira e só. Meu Deus, tentei pronunciar, tentei procurar, mas nem mesmo as palavras me vieram, e a chuva começou a desabar sobre as telhas barulhentas, e finalmente eu chorei, e finalmente eu cedi, e finalmente eu me esparramei sobre as superfícies tão desconhecidas, e finalmente meu soluço alcançou o vento e meu choro devolveu o ar que meus pulmões economizavam, e finalmente eu busquei o mar ao longe, quilômetros e quilômetros ao longe, e finalmente eu saí de mim para entrar no mundo, eu saí de mim buscando o abismo, eu saí de mim e corri para a chuva que pingava e me escorria e me sondava e me sabia, dançando-me entre os filetes entre as pedras e as areias, percorrendo-me caminhos desconhecidos.

4 Comments:

At 1:10 PM, Blogger Unknown said...

Nossa, que depressivo... =(
Bem triste, mas gostei
Bjs!!!

 
At 2:08 PM, Blogger r a c h e l said...

Lindo. Clariceano, não?

 
At 10:42 PM, Blogger caeiro said...

círculo de giz que não protege, só isola. texto lindo.

 
At 8:16 PM, Anonymous Anônimo said...

Quem dera todo crescimento fosse ao menos espargido de beleza lírica!
(Gostei particularmente de
"Tudo tão . . . protetor, ameaçando-me." e "eu saí de mim para entrar no mundo, eu saí de mim buscando o abismo, . . . percorrendo-me caminhos desconhecidos".)

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)