domingo, abril 15, 2007

Entre os dias

Era assim a Catarina: palavras baixas, voz inflexível. Olhos? Olhos mornos, talvez sua maior definição. Se tinham cor, se eram o céu, ou o mar, ou o mel, ou o ébano por marfim envolto, pouco importava. Seus olhos eram mornos, e isso fazia com que ninguém se aprofundasse em sua análise, tão acessível e distante.

Palavras inflexíveis, voz baixa. Os gestos eram contidos, nunca se esparramando no ar quente daquele início de abril atípico. Fronteiras, delineação, contornos. Ela nunca era limítrofe. Sempre dentro, nunca à beira.

Havia uma música, e ela poderia ser desligada a hora que quisesse. Também poderia apagar as luzes, e o quarto voltaria a ser uma caixa escura: cubo. Mas lá estava tudo, cheio de cores, formas e alguns cheiros indefiníveis. Não podia deixar de sentir o aroma da terra molhada às primeiras gotas de chuva que se misturava ao mofo do armário aberto e ao couro dos sapatos baixos e novos sob a cama. Não adiantava fechar os armários. Não adiantava guardar os sapatos. Fazia calor e a janela não podia ser fechada.

Sempre centrada a Catarina. Começou por não suportar aquela confusão de cheiros bons e ruins. Lamentou não poder separá-los como fazia com os livros na estante. Lamentou o calor intenso quando já era outono - não poderia mais prever os dias, não lhe era mais permitido planejar tudo minuciosamente.

Então, numa segunda-feira à noite, Catarina pintou a boca com um batom quase vermelho esquecido no fundo de uma gaveta havia anos. Catarina calçou os sapatos de salto - os únicos que tinha - usados somente no casamento da amiga - a única que tinha. Catarina saiu de casa sem apagar a luz. Catarina pegou o dinheiro reservado para as duas semanas seguintes.

Então, numa segunda-feira à noite, Catarina provou duas bebidas diferentes em quarenta minutos. Catarina falou com quem não conhecia. Catarina riu alto só porque deu vontade. Catarina gastou mais dinheiro do que podia. Catarina quase foi atropelada. Catarina olhava o mundo e as pessoas. Mas não olhava, simplesmente. Catarina olhava o mundo e as pessoas com fome.

Por algumas horas, Catarina sentiu-se feliz. Depois, dia seguinte, terça-feira entre cinza e sol, Catarina espanou da cama desordenada as lembranças e sensações dos momentos. Limpou os sapatos, jogou fora o batom esquecido - e deu-se à ordem novamente.

2 Comments:

At 8:59 AM, Blogger caeiro said...

o papo sobre se viver nos intervalos, né? texto muito preciso e bonito. continuo com a pulga atrás da orelha, meio chovendo no molhado.

 
At 8:23 PM, Anonymous Anônimo said...

Tenho um favoritismo pelo outono, confesso. Talvez porque eu faça não primaveras, mas outonos. Estação de "confusão de cheiros", todos bons para mim, até os não-bons. E o outono faz isso, sempre faz: faz Catarina revolver seu viver!

 

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"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)