Unexpected?
No dia em que meu pai morreu, eu parecia alguém representando um papel - mas não era eu, exatamente. Vesti-me perfeitamente no papel de filha de luto, alguém entre a dor e o respeito, entre o silêncio e o soluço. Vesti-me, embora colorida, da sobriedade que a situação exigia. E eu era mais situação que qualquer outra coisa.
Por entre as horas que passavam, no entanto, a dor se infiltrava, silenciosa. E aquela segurança minha, aquela sórdida segurança que esconde o terreno instável em que nos encontramos, aquela segurança se liquefazia, aos poucos, em lágrimas solitárias e medrosas. A dor me ganhava.
Não sei como, não sei quando sofri. Talvez tenha sofrido por toda a minha vida, e também o sofro agora. Talvez tenha me acostumado ao sofrimento que me acomete a cada vez que meu corpo toca o lençol e a luz tênue do abajur se esvai. Talvez nunca em minha vida tivesse me dado conta de que o que tanto se teme também se torna real.
Antes, tentando me acalmar, pensava às vezes que aquilo que mais tememos é o que jamais acontecerá. Mentira. Mas também não acho em mim qualquer capacidade premonitória. Acho em mim, sim, uma dor fria, quase coagulada, que não me faz abrir a boca em grito.
Mas abro a boca, talvez em suspiro. Ou abro os olhos, tentando impedir, em vão, que a lágrima corra rosto abaixo. Tentando impedir que a dor soterre qualquer vontade de vida.
No dia em que meu pai morreu, eu morri um pouco, também. Eu morri bastante. E enterrá-lo, sob um sol ironicamente brilhante e feliz, entre suspiros de tristeza profunda e de calor sufocante, fez com que enterrasse uma grande parte de minha vida. Aquela parte em que bastava fechar os olhos e imaginar que tudo ficaria bem, que pegaria no sono. Aquela parte em que, na verdade, eu tinha a plena certeza de que tudo ficaria bem. Lindos tempos, esses.
Da serra e do mar
Sempre fui das montanhas. E do mar. Sempre, talvez, tenha sido da serra do mar. Escarpada, íngreme, mas com um horizonte dócil e reto. Um horizonte alheio a qualquer movimento.
Mas a serra, a terra, não é firme. Ilusão a minha. Venderam-me como terra firme, o escorrediço. E é, de fato? Toda eu escorrego em medos, inquietações, angústias. As árvores, que antes sombreavam, agora esperam, espiãs. Atentas, talvez, ao menor ruído dos trovões distantes. Atentas ao céu que se liquefaz.
A terra se liquefaz. A serra. Tão certa apontando para o céu. A serra se liquefaz e vamos, a caminho do mar, ainda que por tortuosos destinos. Sempre em busca daquele secreto horizonte, tão firme, tão dócil, tão reto. Tão alheio.
A serra - erra? - que se move e que nos move, nômades aprisionados entre árvores centenárias. O seguro existe? O céu que nos protege?
A serra do mar: ondas. Ondas que se veem de cima do avião, ou das vertiginosas hélices dos helicópteros que se afastam mas não nos escapam. As ondas em que nos posicionamos, rijos, firmes, claros, nobres. As ondas que não se sabe quando vão.
Onde arrebentaremos nós, os (da serra) do mar? Onde a espuma se faz areia, onde o rio se faz oceano? Onde se faz da terra o mar? Onde pomos os pés, sem prancha, sem sabermos se estamos à beira ou em águas profundas? Onde, como?
Inútil tentar descobrir. Serei eu íngreme, movediça, enquanto meus olhos pairam frente ao oceano a tudo alheio? Seremos todos nós?
Por enquanto, é noite, e um luar complacente banha as ondas das escarpas. É noite, e tudo silencia, tranquilamente. Mas, sei eu, sabemos nós, as ondas vêm. E elas não avisam, mesmo em janeiros, quando vão chegar.
Joie de vivre
Passeava pelas calçadas, fechando os olhos ao inspirar. A cadência de seus passos fazia balançarem seus cabelos longos, mas ela começava a sentir a nuca que suava, e suas faces iam pouco a pouco tornando-se rubras. As copas das árvores, unidas, colocavam-na em suave penumbra em pleno meio-dia, mas os raios de sol que escorregavam até ela tornavam-na instantaneamente brilhante, quente, úmida.
Não pensava em nada. Não havia pensar - só sentir. Os passos na calçada. A cada lufada de ar, os pulmões se enchendo e se esvaziando. A cabeça pendeu para trás, as hastes das flores às margens do rio curvavam-se à leve brisa.
Era tão bom. Era tão simples: bastava respirar, e todo o resto desaparecia. Ou só apareciam os cheiros, as formas, as cores das fohas das árvores que ficavam cor-de-rosa-maravilha ao fim de outubro.
Era tão bom, era tão simples: sem problemas, ou - que existissem! O sol era mais forte. Também o céu. Também o ar. E o cheiro do mato crescendo aos poucos sem pressa, descompromissadamente. Era ela. Ela era. Tão simples.
Mais do mesmo
Experimento correr os dedos sobre o teclado: domino todas as letras, pontos, sinais. E juntá-los, como?
Eis o mistério. Em um livro, lê-se que a vida é milagre, combinação de tantos elementos químicos tão banais mas que, sabe Deus em que momento e por que razão, juntam-se e formam todos nós, cada um tão igual e tão diferente.
Eis o mistério: todas as combinações estão aqui, sob meus dedos. Posso abrir a caixa? Drummond disse isso melhor que eu. Ao menor esforço, tudo se acessa. Revelam-se as realidades inexistentes? Revelo-me eu?
Tudo tão fácil, tão íntimo, tão meu.
E pensar que escrever às vezes parece simples.
Instantâneo
Certa saudade de mim: não acho minhas palavras entre as alheias. Olho textos, fotos, e me pergunto em que ponto exato eu parei no caminho.
Tento cultivar flores para ter alguma poesia na vida.
No "devagar depressa dos tempos", só mesmo Guimarães Rosa para surpreender de vez em quando.
É tudo tão esparso e fragmentário que eu me sinto mega-pós-moderna (os hifens estão certos?).
Ainda vou tentar organizar minha vida e o tempo louco que me arrebata rumo a sabe Deus o quê.
Sei lá.
Mural
A tese, sempre ela, nos últimos meses, semanas, dias. A tese. E, às três da manhã, tenho que citar. Clarice. Sempre.
EM BUSCA DO PRAZERE tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. Não sei como esperar que eles venham sozinhos. E é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. A busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. Não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.
Em 2009
Há algum tempo que já não passo por aqui. No entanto, tem passado o tempo. Os dias, as estações se sucedem - sem ordem lógica, é verdade. É inverno no início do ano, e da janela só vejo uma chuvinha triste e fina, fininha, que me faz pensar em White Christmas. É janeiro e meus olhos se esforçam para ver além da chuva.
Não sei se cheguei a fazer alguma resolução de ano novo. Acho que, talvez, nunca tenha feito alguma. Ou, se fiz, jamais deu certo. Ainda não decidi se acredito ou não que, na transição momentânea de um ano para o outro, as coisas realmente mudam. Mudo eu?
Sei, sim, que mudaram as regras da boa escrita - estou obsoleta. Percebo que precisaria voltar ao texto, revisar e ver se não coloquei aqui nenhuma palavra - que essa, sim, transformou-se na mudança de um ano para o outro - incorretamente.
Não. Coloco isso na lista enevoada de minhas resoluções de ano novo. Um dia, quem sabe, volto ao texto, e corrijo, retiro os pingos dos us. Sabe Deus se isso vai acontecer um dia.
Do mural à tese sem que eu tenha percebido
Procurei, mas não encontrei. É de
Roteiro do silêncio, Hilda Hilst, em 1959. O trecho eu peguei em um artigo no volume a ela dedicado dos
Cadernos de literatura brasileira.
Não há silêncio bastantepara o meu silêncioNas prisões e nos conventosNas igrejas e na noiteNão há silêncio bastantePara o meu silêncio.(...)O não dizer é o que inflama.E a boca sem movimentoÉ o que torna o pensamentoLume CardumeChama********** Ando lendo um pouco mais Hilda Hilst, e descubro da poesia mais densa e legítima. Às vezes encontro daquelas coisas que gostaria de ter escrito (gostar não é, evidentemente, ter possibilidade de). Mas leio, e quem sabe não sai alguma coisa disso tudo.
Até porque o contexto era outro. Entrando um pouquinho na aula, o trechinho do poema é bem representativo dessa época complicada por que passou o mundo:
Seguindo os rastros dessa caminhada, destacamos, em sua poesia primeira, a presença do "silêncio" que se impunha aos poetas nos anos 50 (período da Guerra Fria, quando parecia que já não havia mais nada a dizer ou que nada mais importava). O que não significa que se calaram. Na verdade, de mil modos, falaram sobre o não-falar
ou sobre a inutilidade da fala.Isso está no volume dos
Cadernos. A autora é Nelly Novaes Coelho - escapo do plágio, mas não vou ser chata a ponto de colocar referência bibliográfica (lembrar-me de escrever a tese em outra hora e em outro lugar).
A propósito, a tese nada tem a ver com Hilda Hilst. Pelo menos, não que eu saiba. Essas coisas têm suas esquisitices, e às vezes nos levam aonde não planejamos ir.
E, já que inspiração não vem, escrevo qualquer coisa de um livro que comecei a ler hoje. Aí vai um trechinho interessante:
(...) é um pacto de mão dupla: o escritor se faz ouvir e o leitor lhe dá ouvidos - ou, mais precisamente, o escritor trabalha para criar ou encontrar uma voz que irá alcançar o leitor, fazendo-o apurar ouvidos e prestar atenção.É de
A voz do escritor, de A. Alvarez. Sem referência bibliográfica.
Lembrar-me de tentar escrever a tese.
Menos que uma tentativa
Alguma falta, não sei.
Sinto falta das palavras escorrendo entre os dedos - mesmo sabendo que não conseguirei pegá-las.
Só porque é hoje
Descobri que hoje é o Dia (Internacional!) do Blog.
Descobri, também, que a escolha se deu pela semelhança da data com a palavra blog: 3108. Vá lá que seja.
Descobri, ainda, que hoje é dia de colocar mensagens a seus leitores, indicando blogs interessantes.
E cá está este blog, totalmente desinteressante, abandonado, primeiramente, por mim.
Única postagem de agosto. Mais uma postagem totalmente sem razão.
Leitores, por favor - caso ainda haja alguém que visite esta empoeirada página -, cobrem mais de mim - caso ainda haja alguém que acha que vale a pena.
Será que consigo desempoeirar??