domingo, dezembro 31, 2006

Aos pés de 2007

Não queria escrever este post. Ou queria escrever algo diferente - muito embora não saiba exatamente o que vai sair a partir de agora (na grande maioria das vezes, começo um texto sem saber o que vai ser dele, sem saber como acabará, e este não é exceção). Queria fugir a todos os lugares-comuns que se fazem nestes momentos. Desejos, planos, promessas, um blá blá blá infinito de palavras vazias que não farão o menor sentido à chegada da primeira segunda-feira (útil, é bom dizer: dia oito de janeiro). Ou antes. Afinal, desejos, planos e promessas não nos levam a lugar nenhum, mesmo.

Não chamo isso de pessimismo, mas também não sei do que posso chamar. Sinto algo que não é muito especial na virada de um ano. Ou, talvez, não sinta. E toda a minha negativa anterior resume-se à idéia de que o planejamento simplesmente não existe, e que a vida acontece agora.

Se planejo emagrecer? Planejo guardar dinheiro, pintar os cabelos, voltar pro francês, comprar vários DVD´s, conhecer pessoas novas, aprender a fotografar, jogar fora papéis velhos, ser mais calma no trânsito? Não será agora que isso se definirá. Não será nenhum espírito de fim de ano que me levará a qualquer dessas coisas no ano que chega empurrando tudo, sem pedir licença.

Além do mais, somos, de certa maneira, atemporais. Não nos medem os dias, não nos definem as semanas: a vida se constrói ao longo. A vida se constrói ao largo dos desejos, planos e promessas. A vida, ela mesma se constrói.

Vou comemorar, eu sei. Música, fogos e bebidas. Taças e corpos se tocando. Desejos, planos e promessas. Em vão.

Aos pés de 2007, sinto que nada mudou. Nada mudará? Não se sabe. Estamos aí, à mercê de não se sabe o quê. Estamos aí.

E acabei sem fugir aos lugares-comuns.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Só porque gostei desta foto...


(E porque é minha!)

P.S.: Sim, admito que ela está um pouco tremida. Mas gostei, ainda assim.

Da brandura da tempestade

Ontem fiquei à espera da tempestade que se anunciou no começo da tarde. O delicioso tédio dos dias entre o Natal e o Ano Novo encheu-me o peito, e a sensação só aumentou à medida que chegavam as nuvens escuras e carregadas. Eu via a transformação, como elas se moldavam, como elas se mudavam, se fundiam, como seus limites se esvaíam em chuva ao longe. A cortina dos pingos distantes formando listras verticais atrás das montanhas que sumiam de uma hora para a outra. Chuva pesada - chegou-me o cheiro às narinas. O vento se intensificava, e os raios começaram a cair. Eu ouvia as trovoadas, deliciando-me com toda aquela violência que chegava com as lufadas frescas e perfumadas de terra molhada. O céu pesava sobre a terra, e eu esperava ansiosa o romper dos traços que separavam a água do chão. Primeiro, o cheiro; logo chegou o barulho, sem que visse pingo algum. Começou a chover, enfim: gotas grossas, espaçadas e barulhentas que dançavam nas telhas e flores. Apertava a chuva, expandia-se o peito: respirava largo o ar leve, fresco e perfumado de tarde de verão. A tempestade lá fora se fez branda calmaria dentro de mim.

Outro post natalino

Pra dar uma certa continuidade, caso haja algum leitor querendo saber como foi meu Natal, já que toquei no assunto anteriormente: meu priminho de quase dois anos adorou o cavalinho-de-pau que dei para ele, e ficou aceso até mais de uma hora da manhã. Não houve Papai Noel para estragar sua alegria, e ele pôde gastar sua infinita energia com gritos de alegria pela noite inteira.

Acho que Papai Noel não me achou muito boa menina durante o ano: dia 24 perdi um brinco que adorava, estraguei o salto da sandália que o namorado deu na mesma data, e no dia 25 meu carro apareceu com um arranhão no pára-choque - algum ruim-de-roda (que eu julgo ser do sexo masculino, apesar dos homens dizerem que são as mulheres que dirigem mal) não conseguiu sair da vaga sem arrastar o que estava ao lado dele. Obviamente, não xinguei o sujeito - sim, sexo masculino - somente de ruim-de-roda, mas vou manter algum decoro neste texto.

Não xinguei somente o ruim-de-roda. Xinguei o Papai Noel, que parecia estar de sacanagem com a minha cara. Devo informar que também havia alterações hormonais nesses dias.

E não é que deu certo xingar Santa Claus? Ao menos achei o brinco que havia perdido. A sandália botei pra consertar, embora vá me levar um mês pra voltar. O carro vou ter que consertar. Mas veio uma surpresa boa pra dar uma equilibrada, ou mais que isso, no saldo natalino: pela primeira vez na vida, fui sorteada numa promoção e ganhei um premiozinho que não é nenhuma maravilha, mas dá pra fazer uma alegriazinha consumista. Ganhei um vale-compras de quinhentos reais pra torrar num shopping da cidade. Legal, não? (Aí Papai Noel foi gente boa!)

Mas foi bom encontrar a família, essas coisas. Foi bom comer bolo inglês, que minha mãe só faz no Natal e no Ano Novo. Foi bom sentir cheiro diferente no ar, ver outras luzes, rir outros risos.

Lamento apenas a passagem de tempo - sim, inexorável - que faz com que o Natal não seja mais o que era antes. Ou mudei eu? Este ano o Natal chegou correndo tanto que mal tive tempo de me preparar, mal tive tempo de degustar os dias que o antecedem, mal tive tempo de ver a decoração natalina se expandindo a cada dia. O Natal chegou e se foi como um susto.

Assim será também o dia 31, a virada do ano. Susto, sempre. E susto maior quando perceber, e não vai demorar muito, que já se passaram meses e meses...

Mas se é assim a vida, fazer o quê? Pelo menos tenho o vale-compras para torrar e fazer uma alegriazinha consumista!

Ah, quanto materialismo...

Confidência do petropolitano

Por toda a minha vida morei em Petrópolis. Principalmente, nasci em Petrópolis. Vá lá, talvez Petrópolis não seja um nome tão sonoro quanto Itabira. Talvez carregue mais “pompa e circunstância”, diriam os saudosos do passado dourado escondido atrás das paredes descascadas dos prédios históricos – embora não se saiba exatamente onde se encontram as tais pompa e circunstância atualmente.

Caminho pelas ruas da cidade: vejo meus conterrâneos, olho-me ao espelho. Petrópolis é um entre-lugar, um meio-termo: inveja-se a irreverência do carioca, simula-se o distanciamento do europeu. Ambas as tentativas são frustradas. Por isso, orgulhamo-nos das temperaturas baixas no inverno: provamos que fugimos ao estereótipo de Brasil tropical, do calor que nunca cessa. Por isso, orgulhamo-nos das temperaturas altas no verão: provamos que também temos um pouco de Rio-quarenta-graus que é propagado nos quatro cantos do mundo.

E há o ruço, e há a chuva incessante: há a neblina constante que embaça as retinas fatigadas ou não. Isso porque estamos à beira do abismo, alto da montanha – abaixo, o mar. Riram de mim quando disse que não gostaria de deixar a cidade, que não gostaria de morar distante da praia. Apesar da altitude, avista-se a baía das bordas recortadas a que recorremos quando queremos ver o pôr-do-sol, de fato (aqui o sol sempre some antes que o céu mude de cor). Estamos no meio do caminho entre o mar e as minas. Sim, as Gerais. Somos as primeiras montanhas que se avistam da entrada do Rio que não é rio.

Talvez o que mais defina Petrópolis seja o meio-termo. E como os petropolitanos se ressentem desse aparente equilíbrio! Tudo o que qualquer jovem nascido por aqui quer é estudar no Rio. A cidade, que não é tão pequena, parece vila antiquada pelos que clamam pela brisa do mar carioca. No entanto, há um velado sentimento de superioridade em relação a cidades vizinhas menos populosas e desenvolvidas. Por isso, mesmo uma notícia desagradável no jornal pode ser repetida com algum sabor nos salões e bares da cidade: a cidade não é mais a mesma, a cidade está crescendo, temos também alguma violência. Não somos tão interioranos como presume a metrópole.

Afinal, nossa terra foi escolhida: por aqui passou o Imperador, que se encantou com o clima, com o lugar, com as montanhas e suas sombras. Aqui o filho do Imperador construiu sua residência de veraneio, e aqui passou muitas longas temporadas. Aqui os turistas passeiam em vitórias, sentem-se no século passado, muito embora os cavalos maltratados disputem o espaço das ruas estreitas com os carros modernos e barulhentos de buzinas incessantes. Os pássaros cantam suspensos no emaranhado dos fios de incontáveis postes. A poeira das ruas movimentadas embaça os vidros das janelas imperiais.

Há algum ranço de monarquia por aqui. Conversas em que se reverencia a família real. Orleans e Bragança: havia um príncipe que passeava a cavalo em seus domínios republicanos. Lenda? Há quase um sentimento messiânico de que um rei poderia mudar o país e, principalmente, a cidade. Ao menos não se fala de Dom Sebastião por aqui, mas sonha-se com esse passado de luxo em que Petrópolis era talvez o lugar mais badalado do Brasil.

Ah, e o passado... O quanto Bandeira não escreveu por aqui? E Tom Jobim, e Vinicius? E “Águas de março”, que diz-se que também nasceu entre estas montanhas? O quanto não carregamos... No momento, o orgulho vem principalmente de banda adolescente e de dupla de humor negro que aparecem na MTV. Saudades da década de 50, mesmo sem tê-la vivido... Estamos na mídia, estamos na novela das oito. Mas essa Petrópolis não existe, ou existe só para turista.

É assim em qualquer lugar, todos dirão. Só os turistas conhecem esses lados positivos dos lugares. Por isso caminho, muitas vezes, ávida desse sentimento de novidade que quem visita outras paragens estampa nos olhos. Por isso faço percursos diferentes, por isso aguço o olhar, o olfato. Por isso observo essas pessoas que vêm e vão agitadas ou que permanecem nos bancos das praças vendo a cidade se metamorfosear, tal como Pedro II ao centro de sua praça.

De resto, reclamo das obras, reclamo do trânsito, do barulho, da decadência crescente que toma a cidade a olhos vistos. Com elegância? Talvez. Talvez carreguemos, nós, petropolitanos, algum ar blasé quase monárquico. Talvez carreguemos o suposto requinte de europeus: os colonos alemães que povoaram a cidade, artesãos, agricultores nada sofisticados que nos legaram olhos claros. Tentativa frustrada de Europa nos trópicos, tentativa frustrada de litoraneidade na montanha. Nós, o meio-termo.

Caminho pelas ruas da cidade: vejo meus conterrâneos, olho-me ao espelho. Observo as mudanças gradativas que transformam os lugares e as gentes. Observo minhas próprias mudanças, vejo minha gradual aproximação do quente Rio de Janeiro – amplia-se o sentimento do mundo, que é grande, que é vasto, que é maior que a cidade à beira-mar. Que é maior que meu coração. Nele cabem também outros lugares que também me compõem. Mas o que há de imutável em mim, em nós, na cidade, permanece conosco: nascer em Petrópolis determina uma vida inteira. Assim como nascer em qualquer outro lugar.

sábado, dezembro 23, 2006

Um post natalino

Antevéspera de Natal: precisamos de alguma referência à data, não? Pois bem; vamos a ela.

Minha irmã considerou hoje, muito propriamente, que a vida profissional de um Papai Noel é muito semelhante à de uma garota de programa, ao menos em nossas lembranças de infância (as lembranças de infância, é bom dizer, são do Papai Noel!). Explico-me: na noite de 24 de dezembro, havia alguns Papais Noéis (perdão pelo plural feioso) vagando pelas ruas do bairro, à espera de qualquer carro que parasse e perguntasse se ele estava livre para visitar alguma casa. Claro, combinavam-se preço e tempo, dois fatores interligados. E pelas ruas andavam vários homens vestidos de vermelho, de gorro na cabeça, suando debaixo das roupas invariavelmente surradas. Como não era nenhuma super-produção, nenhum deles usava enchimento para ficar mais fofinho, como um bom Papai Noel. O que acontecia é que muitos deles já traziam a barriga acoplada, muitas vezes a conhecidíssima barriga de chopp.

Diz minha irmã, também, que ela se lembra vagamente de uma ocasião em que foi contratado um Papai Noel que chegou bêbado à casa de nossa avó, onde acontece, até hoje, a distribuição de presentes. Não me lembro de tal incidente, mas não duvido, em absoluto - consigo imaginar a cena!

Hoje, eu já quase trintona, tenho apenas dois primos pequenos que passarão pela experiência da espera do presente de Natal. Na verdade, um apenas - o mais novo tem só oito meses, nem dará pela situação. O mais velho, de um ano e quase onze meses, morre de medo do Papai Noel: se vê qualquer imagem dele, solta um "ho ho ho", e emenda, imediatamente, um "ai ai ai", com uma cara de desespero... Ao menos não fizemos com ele a tortura da colherzinha no copo, por que já passaram vários primos mais novos. Havia bagunça? Blasfemava-se contra Santa Claus? Imediatamente se simulava o sininho do Papai Noel que o moleque ajoelhava debaixo da mesa e prometia nunca mais pronunciar palavra alguma que pusesse em dúvida a reputação de tão amável velhinho. Nunca mais ele o chamaria por todos os nomes de cachorros existentes nas redondezas.

Não sei se meu tio contratará um Papai Noel de programa amanhã. Acho que não, ou o pobre do meu primo ficará sem cordas vocais de tanto gritar de pavor. Há muito tempo, na verdade, não vejo um Papai Noel recebendo real atenção de crianças. Passei ontem por um, em um shopping da cidade, que estava sentado em sua poltrona, entediado, balançando o sininho impacientemente, enquanto as crianças olhavam as vitrines e nem davam pelo amado e temido velhinho enfiado naquela roupa escaldante. Ele mesmo já chupava as balas que deveria distribuir às crianças - quando muito, dividia-as com as cabeleireiras que desciam do salão de beleza do segundo andar para fumar. Aí, sim, Papai Noel se animava.

Espero, portanto, pela noite de amanhã, em que se distribuirão os presentes e verei se meu priminho vai gostar mais dos brinquedos que vai ganhar ou se do papel que os embala... Acho que já sei qual é a alternativa correta!

P.S.: Sugiro, a todos, que assistam ao filme "Papai Noel às avessas". Mais politicamente incorreto, impossível!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

História qualquer

João Inocêncio da Silva tinha vinte e oito anos, era alto, mulato, de olhos calmos, e corcunda. Principalmente corcunda. Desde que se entendia por gente, o que mais entendia era o chão: a cabeça pesando para baixo, as costas como dura parede. O chão, sempre - o eterno conhecido. Taciturno era João Inocêncio - não havia outra forma de ser. As pessoas sempre vistas de outro ângulo, nunca um cara-a-cara. E poucos sabiam a cara de João. No colégio, não sabiam se era concentrado nos deveres ou se distraído nas explicações: sempre com os olhos voltados no caderno. Estudou até a oitava série.

João Inocêncio da Silva, 28 anos, 1,87 m, pardo, olhos negros, com acentuada cifose, empregou-se numa lanchonete localizada no subúrbio do Rio. São grandes e distantes os subúrbios do Rio, fragmentados como sonhos ao amanhecer: do subúrbio onde morava ao subúrbio onde trabalhava, levava longas duas horas em dois ônibus lotados. Sempre de olhos calmos, o mulato olhava para o chão, a cabeça pendendo. O tempo se arrastando, engarrafado, a lanchonete colorida que parecia nunca chegar. Mas chegava.

Às duas da tarde, estava João Inocêncio alinhado em seu uniforme de camisa xadrez e calça social, boné direito na cabeça enviesada, olhos no chão, procurando o que limpar. Materiais de limpeza sempre a postos, sempre muito trabalho a fazer: grande era a sujeira deixada pelos clientes barulhentos que tinham pés, mas não tinham rosto. As mesas limpas, o chão lavado. A cabeça pesando, mostrando a direção do chão. A menina correu e derramou o suco todo; os adolescentes mal-educados fizeram guerra de batata frita de uma mesa para outra - e lá ia ele, calmo, taciturno, limpar a sujeira deixada pelos clientes. Sempre um brinco a lanchonete. Incansável, ele esfregava o pano úmido deixando imaculado aquele chão quase imundo. Não tinha amigos, mas cumpria com capricho o seu papel.

Às onze da noite, João Inocêncio esperava o ônibus de volta para casa. Quando saía, o trânsito era leve, e o tempo de viagem era reduzido à metade. Já sem o uniforme, ele mostrava o cansaço acumulado: a camisa de malha surrada moldava-se às costas que pendiam ainda mais, o peso das horas esmagando-o contra si mesmo.

Pois foi numa noite de dezembro que João Inocêncio olhou para a moça que estava sentada no outro lado do ônibus sonolento. Sandálias de saltos largos, pernas fortes, saia desfiada à metade da coxa, blusa rosa gritando na luz débil, pulseiras coloridas de cristal, unhas longas de um marrom salpicado de estrelinhas, argolas nas orelhas que prometiam perfume vindo da nuca revelada pelo coque improvisado com um lápis, cabelos tingidos de rubro castanho. Escutava qualquer música num aparelhinho e tinha os olhos instavelmente abertos.

Ele levantou a cabeça, tentou inflar o peito. Doeu. Àquela hora da noite, cansaço acumulado de um ano inteiro, era difícil não olhar para o chão. No entanto, aquela moça o obrigava a endireitar-se, e ele sentiu a tortura do aparelho ortopédico que a mãe, um dia, havia insistido para que ele usasse. Ele a havia decepcionado. Choravam em silêncio, a incompreensão de que ele não queria deixar de olhar para o chão. Ele já estava acostumado a encarar os pés das pessoas, quando muito, a cintura, e o aparelho era um castigo duplo. Um peso que seus olhos não poderiam suportar. Silencioso, abandonou o tratamento. A mãe abandonou a causa. Silencioso, sempre, João Inocêncio cresceu muito e olhava cada vez mais para o chão. Mas a menina do outro lado do ônibus o puxava, o endireitava, o alinhava. Coluna reta, noventa graus. Esforço, dor, suspiro mudo. Olhou para o lado com os olhos sofridos.

A menina nem deu por si. Àquela hora da noite, carregando o peso de uma semana inteira de trabalho, semana que antecedia o Natal, clientes barulhentos, exigentes e mesquinhos, ela estava exaurida. A música que tocava a embalava. Mas pôde ver que se aproximava o lugar em que saltaria, e começou a se aprumar.

Era o momento. Desperta, agora, João Inocêncio tinha chances de ser visto. Olhava-a, timidamente ostensivo, tentando disfarçar a dor no peito, nas costas, na nuca. A camisa de malha surrada parecia outra - simulação de força que emanava dos ombros que alargava. Respiração ritmada, mas rápida, olhos fixos.

Ela levantou-se rápida, puxou a corda, deixou cair uma revista que carregava consigo. Caiu aos pés de João Inocêncio. Imediatamente, ela foi em sua direção, buscando o que perdera. Imediatamente, ele curvou-se para apanhar o objeto - a chance de que precisava. Seus olhares se cruzariam, certamente. Suas mãos possivelmente se tocariam. Ela sorriria e mostraria os dentes tortos e brancos. Ele diria timidamente seu nome, e ela lhe daria seu telefone para que eles marcassem um encontro futuro.

Ele curvou-se para apanhar a revista - e efetivamente o fez. No momento em que se erguia, porém, o aparelho ortopédico da infância pesou-lhe, envergou, oprimiu. Tentou. Virou-se para o lado. A cintura da moça - fina, a blusa rosa que não chegava até o cós da saia, pedaço de barriga que sugeria um piercing no umbigo. Um cheiro doce e forte. Pêlos grossos e dourados na coxa direita.

Ela percebeu o problema de João Inocêncio, e abaixou-se para pegar a revista. Pegou. Os dedos roçaram seu braço, e ela agradeceu, pedindo desculpas. Uma palavra incompreensível pronunciada, frustradamente. Ela olhou para ele, buscou seus olhos, mas ele continuava olhando para o chão. Imóvel. Taciturno. Dolorosamente.

João Inocêncio conseguiu olhar pela janela quando a moça saltava na calçada deserta. Ela não acompanhou o ônibus, não o buscou através da vidraça suja de poeira e fuligem de ruas. Ele a acompanhou o quanto pôde, o quanto seu pescoço permitiu.

Vinte minutos depois, João Inocêncio saltou do ônibus. Caminhou pela calçada conhecida, encontrou os mesmos buracos nos caminhos. O chão, sempre. A casa de luzes refletidas no piso.

João Inocêncio da Silva, 28 anos, 1,87 m, pardo, olhos negros, com acentuada cifose, deitou-se e sonhou com a moça de cabelos rubros em coque perfumado. Música alta no sonho. Revistas chovendo de um céu lá no alto. Lá no alto, ele olhava. E voltava os olhos para o céu, e via o céu azul e os olhos verdes-azuis-castanhos da moça com quem não falara. Ela era linda no sonho - ainda mais bonita que a lembrança da noite. Deixava de ser corcunda naquela madrugada, e adquiria uma firmeza desconhecida em sua voz. Ela cedia ao seu olhar e caminhava com ele, mãos dadas, cabeças aprumadas, encarando tudo o que aparecia à frente. No sonho.

João Inocêncio acordou às oito da manhã, tomou o café fraco deixado pela mãe que fora trabalhar, e começou a limpeza da casa pequena e empoeirada. Às onze, começava a arrumar-se para o trabalho. Esperava rever a moça na volta para casa - preparou-se com o perfume do irmão mais novo. Mais tarde, limpou o mesmo chão dezenas de vezes.

Mas a moça não apareceu aquela noite, nem na noite seguinte, nem em noite alguma. João Inocêncio sonhava com aquela cintura, com o toque dos dedos em seu braço, com os pêlos dourados da coxa direita. Nunca mais a viu. Olhava, sim, cada vez para o chão, e ele se aproximava com o peso dos meses. No chão ele se reconhecia. No chão ele a encontrava, e ouvia o pedido de desculpas que ele não conseguira responder. Havia muito a ser limpo, ainda, o chão já conhecido. Era o seu mundo: não deveria ter tentado sair dele. O chão. Haveria muito a ser limpo pelos anos seguintes e taciturnos. E só.

Eis que surge

As pratas, os tesouros,
Os vindouros cheiros de mar,
Gosto de água na boca,
Invernos que hão de chegar -
Ou que já passaram,
Em sua própria neblina esquecidos.
Tudo se encontra no texto
Que teço, que sinto, que sonho,
Que existe sem acontecer.
Tacitamente aceito
Caminhos que me convêm,
Criados agora ou ontem,
Trilhas que ora se mostram,
Ora se apagam, sem prévio aviso.
Apenas flutuo - ou afundo,
Nas luzes que o escuro destaca,
Sentindo o cheiro de grama
Que penetra as cortinas fechadas.
E as noites de sons inaudíveis
Repletas de plenas palavras
Que existem sem acontecer
Povoam o duro silêncio
Do poema que há de nascer.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Dizendo

As palavras
Escorrem de minhas mãos
Escorregam pelos meus dedos
Deixando-me apenas a vaga impressão
De água fria em pele morna
Caindo
Pingando
Juntando-se
Unindo-se ao caudaloso rio
Em que já não há mais um só sentido
E correm todas as idéias
Profusas, arrebatadoras,
Em direção ao pleno abismo
Em que elas, tácteis,
Chovem em realidade, inapreensíveis.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Chamado

Eu te chamo em teus sonhos
Porque a noite, silenciosa e triste,
Oprime meu peito que se cala
Em bocejo seco e solitário.

Eu te chamo em meus sonhos
Porque sei que é pouco
O tempo em que falas comigo
Que o dia seguinte será difícil
Enquanto acaricias meus dedos finos
Com um suspiro cansado.

Eu me chamo em teus sonhos
Porque lá eu me encontro,
Me percebo, me mostro
A ti e a mim mesma, silêncio e festa.

E dos sonhos e sonos
Separados e unidos
Vivemos, nós dois,
Esperando que nos desperte
O oportuno amanhecer
Chamando-nos para a vida
E para a pele um do outro.

(Fotografia de José Santarém)

domingo, dezembro 10, 2006

Zona de convergência do Atlântico Sul

Só faz chover nesta minha terra. É quase metade de dezembro - quase verão! -, e eu de casaco no domingo. A neblina que não se cansa de baixar sobre meus cabelos, o branco que penetra os cômodos e os pulmões. Silêncio. Onde estão os cheiros do Natal, as cores do verão? Teremos um White Christmas. Se não há neve, há garoa. Branco. Silêncio.

É a tal zona de convergência do Atlântico Sul. Há poucos anos as explicações para o mau tempo em Petrópolis se baseavam nas freqüentes frentes frias - que, certamente, vinham de São Paulo sem escala no Rio, parando aqui na serra. Agora vem essa tal zona. Nem se ouve mais falar em El Niño. Só há essa tal zona. Tudo convergindo sobre nossas cabeças e, sobretudo, sobre as cabeças dos petropolitanos, sobretudo os que moram à beira da serra, como eu.

Hoje eu pude tocar as nuvens, rompê-las, receosa. Dirigia à noite, em uma das mais terríveis cerrações de minha vida. Pouco se via - eu tateava ao volante. Culpa de quê? Da zona de convergência do Atlântico Sul.

Se há crise econômica, se há problemas na política... Pouco me importa. O que eu não agüento mais é essa tal zona de convergência do Atlântico Sul, que faz tudo ficar branco, quieto - "silencioso e branco como a bruma", não pude deixar de lembrar.

Quero o calor, quero o sol, novamente. Quero vontade de sorvete às três da tarde. Quero barulho de ventilador, quero ar condicionado indispensável ao pôr-do-sol distante. Quero guardar os cobertores no armário, definitivamente, até março ou abril.

El Niño era mais simpático. Além dessa zona ter nome comprido, não é personificada - e nem tem nome em espanhol, para que possamos associar, imediatamente, aos argentinos que sopram pra cá o ar polar. Ninguém agüenta mais. Não se concebe um dezembro, no Brasil, branco como este. Ainda que seja em Petrópolis.

E as férias que ainda não chegaram - e parece que não chegarão. Quero praia em janeiro. Quero cheiro de protetor solar. Quero cabelos ressecados ao sol.

Mas, para isso, é preciso que haja alguma divergência... Não sei do quê, exatamente, mas que nada mais convirja para cá!

Solilóquio

É que eu sempre me imaginei como escritora. Talvez não sempre, é verdade. Já me sonhei cantora - e o pior é que acreditava nisso! -, já me pensei professora de Educação Física, aos dez ou onze anos, quando gostava muito de fazer ginástica aeróbica. Quem me conhece sabe o quanto isso é diferente do que eu sou hoje em dia - não tão diferente, talvez, do que eu já tenha sido. Nunca me pensei desenhista, seria pretensão demais e, embora sonhadora, eu tinha algum senso crítico. O fato é que, com as palavras, sempre me relacionei de forma diferente.

Eu, desde cedo, me imagino como escritora. Não tinha dez anos quando escrevia peças de teatros que eram encenadas por meus primos. Fiz um volume de "Historinhas e versinhos", letra caprichada, decorando as páginas com os desenhos mais elaborados que era capaz de fazer - corações, flores de cinco pétalas. E meus pais, alimentando meus delírios, diziam que, se meu avô ainda fosse vivo, eu teria chances de publicar esse meu "livro" (ele trabalhava na Editora Vozes, e já havia traduzido uma Bíblia do alemão para o português). A quem interessar possa, eu perdi esse volume, filho único de mãe solteira.

Ganhei alguns concursos durante os meus anos de colégio, ou, ao menos, fiquei classificada, recebendo alguma menção, tendo algum destaque qualquer. Prosa, poesia - redação, de uma maneira bem geral. E também na faculdade. Ganhei um prêmio literário que me rendeu umas verdinhas e uma viagem a Portugal. Não foi coisa pequena, não - o júri foi composto por Nélida Piñon e Josué Montelo, e o embaixador português, na ocasião. Por anos - e até hoje em dia, mesmo -, fui conhecida como "a que ganhou o prêmio e foi pra Portugal". Ganhei alguma notoriedade na cidade e um cartão da diretora da Editora Bertrand. "Quando tiver alguma coisa, me procure." Está guardado no fundo de uma gaveta. Ganhei alguma notoriedade, ainda que às custas de um texto que, atualmente, acho de mediano pra baixo. Bem o disse Paulo Autran, antipaticamente, que o leu na ocasião.

Trabalho com a palavra. Fiz Letras, estudo Letras, ensino Letras. A palavra é minha vida. A literatura é minha vida, ainda que enviesadamente. A angústia das palavras que já foram ditas, escritas, repetidas, estudadas, exauridas - tudo já foi escrito. Tudo já foi pensado. Os livros são vidas que posso viver. Não, não vou ficar aqui falando das várias experiências possíveis na leitura, do efeito catártico... Não vou. Mas os livros que leio e que estudo são vidas, sim. São vidas que existem paralelamente, é sangue pulsando em cada palavra...

Mas e as minhas palavras? Poucas, repetidas, quando não vazias. Tanta gente que já me falou que eu deveria investir, que deveria tentar, que deveria me dedicar. Mas e quando o texto não vem, e quando vem ruim, e quando a gente vai direto pro fracasso? Os vários concursos que ganhei não são prova de nada, em absoluto. A prova está aqui, eu comigo mesma, eu tentando, tateando, sem resultado. A prova é este blog, prova de pretensão e de medo do fracasso.

Ao menos, ficaram as fotos da viagem a Portugal.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Constatação

Imagino que não seja nenhuma tendência suicida minha - não é o tipo de coisa que passa pela minha cabeça.

Mas, na maioria de meus textos, alguém tem que morrer.

Cruzes.

Altiora

Sem que nada dissesse, ele abriu a porta, deu um passo à frente, e bateu-a atrás de si, fazendo vibrar o ar já parado havia tanto tempo, fazendo dançar a poeira sobre a madeira que, um dia, fora polida. Chamava-lhe o vento lá fora; e o mundo além da casa era tudo o que ele não era, ou tudo o que ele deixara de ser: pernas de calças se entrelaçando nos varais das redondezas, grama pesada de chuva, mosquitos fazendo-lhe sombra. Cheiro de árvores - quais? - que se espalhava e penetrava os pulmões pelo nariz e pela boca, a largos goles. O mundo inteiro, meu Deus. O mundo inteiro. Tudo o que não podia ser contido ou represado ou sufocado estava lá, quente e inseguro. Poderia cair no segundo seguinte, e a queda seria apenas o choque no chão úmido, talvez a dor de secretos espinhos. Ele estalava ao vento observando o bambuzal revolto. O sol queimava gostoso, e dava-lhe um calor de dentro para fora, um calor que poderia ser ouvido ao longe, gritando a todo fôlego que sim, ele estava vivo. O calor que não havia dentro da casa glacial. Não um abafamento; não era isso: eram-lhe os órgãos inchando dentro de si enquanto a pele se arrepiava com o vento quase fresco. Era uma delícia respirar, e engolir o ar como quem bebe água, sedento, e passar na pele os dedos desabituados a sentir. Sim, eu estou vivo - mas surpreendeu-se ao ver que uma gigantesca formiga lhe fizera sangrar o dedão do pé.

Ele era sangue, calor, pêlos, suor, poeira que o vento levava para os lados do bambuzal. Ele era o cheiro que não queria mais sentir, mas era o cheiro: metal enjoando o estômago sempre vazio, só a pele embebida como algodão. Amarelando-se. Descolorindo-se. As veias mais azuis que os olhos. As veias mais azuis que o azul cheio de nuvens mutantes com o vento veloz. Ele vivia a custo, pesado em seu corpo esquálido. Arrastava-se, leve.

E as montanhas, lá na frente. Ele as conhecia? Só de longe, assustado. A vertigem da altura sempre o inibiu. Mas, naquele momento, parecia não fazer mais sentido tanta distância, ele atraído pelos tons verdes e azuis e as sombras acinzentadas da nuvem de chumbo que a sobrevoava. Lá o vento era ainda mais forte... Lá o mundo mudaria ainda mais: do topo ao mar, o trajeto dos olhos o levaria para... para não se sabe onde. Para o distante só imaginado.

A distância intransponível. O sol queimando forte, o vento curvando o bambuzal. Os sons que ele só suspeitava em sua existência parada, metálica, glacial. Os sons de que ele se lembrava, passado muito distante. Os sons, o vento, as cores, as nuvens com que ele sonhava. Não mais o teto branco-esverdeado, imutável, não mais o silêncio interrompido somente pelo sinal de vida que a máquina emitia. Ele se desequilibrava, descalço no chão irregular. Mas como era bom não estar firme, constante - e uma nuvem escura cobriu o sol por uns minutos.

E então ele decidiu ir às montanhas. Conhecê-las, prová-las, sorver seu ar, ser sua cor - ao longe o veriam e o reconheceriam como parte delas. E não era isso que ele era? Não mais o cheiro glacial... Voltava ao vento que desordenava os cabelos, ressecando-os. Voltava ao sol que marcava sua pele, ardendo. Voltava.

Sôfrego, caminhava devagar. Pesava o mundo a seus pés. O fôlego esvaindo-se, chegando a ilusão de que se rarefazia o ar. "Quanto maior a altitude, mais rarefeito é o ar" - nunca se esquecera das palavras da professora que não sorria. E não entendia o que era rarefeito; só naquele momento podia sentir - a experiência tudo ensina. Respirava com dificuldade, o ar rarefeito. Os pés sangravam - formigas e espinhos. Enevoava-se a vista - eram as nuvens. Obrigou-se a subir mais. "Altiora semper petens", e via o brasão estampado no bolso da camisa branca em que faltava um botão. Altiora, entrecortava a sentença buscando o fôlego na névoa que o envolvia, semper, cobiçando o topo da montanha em que ele seria a ventania, petens... Altiora, o vento... O vento, o sol, as alturas, a grama, o chão, os secretos espinhos. Ele estalava ao sol, no pico, no alto, o trajeto dos olhos o levando, distante, para além do mar que se via dos abismos.

Quando o enfermeiro foi levar os remédios do meio-dia para Artur, pensou estar sonhando ao ver a cama vazia, soltos os tubos à volta do leito reclinado, parada a luz verde na máquina que dizia se ainda havia vida. Passara anos naquele quarto, ninguém diria que ele ainda era capaz de andar, de sentir, de viver. Encontraram-no a cinqüenta metros da porta da casa onde ficava, esquecido da família, os olhos abertos tentando ver através da bruma que o envolvia. Altiora. Ele havia alcançado.

Qualquer dia desses

Qualquer dia desses eu piro:
Só na contramão, sem pedir licença,
No meio da rua, gritando no escuro.

Qualquer dia desses eu mudo:
Pra trás o muito ou pouco que já fiz,
Nas trilhas as palavras de outrora,
Viro o rosto pro que um dia eu já fui.

Qualquer dia desses eu surto:
Uivo rouco em noite de lua,
Passos ecoando cá dentro de mim.

Qualquer dia desses eu, mudo,
Qualquer dia desses, um murro,
Qualquer dia desses, eu nada
A dizer sobre o céu, sob o sol:
A voz que só fala do que não há.

Qualquer dia desses eu durmo:
E esqueço o barulho da rua lá fora
E esqueço as suas queixas, seus choros, soluços
E esqueço o que sinto mas finjo que não.

Qualquer dia desses eu morro.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)