terça-feira, setembro 26, 2006

Lições de teoria literária na cozinha

"Mas escrever é difícil", eu disse.

"O texto é problema do texto. Ele que se arrume."

E não é que isso acontece, mesmo? Certo está meu sogro...

segunda-feira, setembro 25, 2006

Esboço de história de um acidente na chuva

Ela via o limpador do pára-brisas que subia e descia, subia e descia, passeando no vidro que brilhava às pequenas gotas de chuva, insistentes. Não conseguia imitar o som do limpador, mas fixava o olhar nas luzes que se acendiam nos intervalos do passeio. Se focasse o olhar nos pequenos pontos, logo eles se dispersavam, e o vidro a chuva as lanternas dos automóveis formavam um desenho borrado e brilhante. Às vezes era bom ficar assim, olhando, sem pensar em nada. Só o som irritante do limpador, cadenciado. Buscou respirar por ele. Limpou o ar de seus pulmões, já condicionado ao frio que vinha das grades. Tudo tão funcional. Tudo tão automático. Se desse ré, o limpador traseiro já era ligado, mesmo sem que ela pedisse. O visor mostrava há quanto tempo dirigia. Que distância havia percorrido. Quanto mais poderia andar sem colocar mais gasolina. Quanto faltava para a próxima revisão a ser agendada, marcada, bem paga na concessionária. E as gotas de chuva brilhavam, caindo também das espessas folhas das árvores da avenida das casas velhas. Tudo era disforme, tudo era difuso. À música chatinha, chiada no rádio, uniam-se o barulho irritante do limpador e a buzina dos carros parados. Ela mergulhou em si mesma, apesar das pessoas que iam e vinham, corriam, com suas sobrinhas coloridas, na frente dos automóveis parados e nervosos. A fumaça do escapamento. As nuvens baixas que desciam ao nível do rio. Um véu, um véu, um véu deixando tudo mais difícil de ser visto. Mais bonito? Mais difícil, como criança tateando no escuro. No escuro branco, onde piscavam as luzes vermelhas e amarelas e laranja e azuis de um carro ridiculamente enfeitado. Os barulhos, as luzes. As cores - só as dos guarda-chuvas. Os andaimes, os arames, as obras. As lâmpadas queimadas que tiravam de seus olhos as esculturas da catedral. As flores exaustas de chuva à beira do rio, curvando-se, entregues. O verde mais brilhante das finas e espessas folhas das árvores das avenidas dos rios da cidade feita de nuvem e água.

E ela não pensava em nada. Lá estavam as coisas, lá estavam os seres, os sons. Esmaecidos - aguados. Como quem dorme ao barulho da chuva, ela foi embalada, e deixou de pensar - só sentia. Sentia tanto que sequer percebeu que a luz amarela do sinal se fazia vermelha, e vinha outro carro de lanternas apagadas que nela encostou, que a empurrou, que a arrebatou para fora de si. Tudo era disforme, tudo era difuso. O branco, o cinza, as luzes, o vermelho. O visgo do vermelho - táctil. Os sons. Um véu, um véu, um véu nos seus olhos. Um véu que ia se fechando em seus ouvidos, também, diminuindo o barulho dos gritos, das buzinas, das sirenes.

Ela se tornou neblina.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Mural

É que é tão lindo... E este conto é qualquer coisa do que há de mais perfeito em toda a literatura mundial. É claro que, como em qualquer elogio rasgado, há algo de hiperbólico nele. Mas eu digo, mesmo assim. Até porque eu não sou a única - e ele continuaria sendo elogiado, mesmo sem mim. E leio, e releio, e releio, e releio "Desenredo", do Guimarães Rosa, publicado em Tutaméia. Aos que já leram, vale a releitura. Aos que não conhecem, vale a pena, por mais difícil que seja seu caminho.

DESENREDO
Guimarães Rosa

Do narrador a seus ouvintes:

- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

Até que - deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.

Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.

Ela - longe - sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.

Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.

Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou - ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

Mas.

Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, porque tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade - idéia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado - plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar - e qualquer coisa se irrefuta.

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.

Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

E pôs-se a fábula em ata.

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Foi só pra enfeitar minha página com essas palavras que são o que há de mais perfeito.



quinta-feira, setembro 21, 2006

De uma possível tentativa bem-sucedida


Ando animadinha desde ontem. É que escrevi um texto bonito. Sério: um texto bonito de dar orgulho.

Escrevi em vinte minutos, dei uma revisada. Mas ele está longe de mim, agora. Isolado, longe dos irmãos. E eu não o reli depois, quando o calor do momento me enchia de um sentimento que não se experimenta a toda hora: o sentimento de fazer algo realmente bom. Curto, mas bom.

Não vou escrevê-lo aqui. Quero cuidar dele, deixá-lo amadurecer dentro de mim. E apresentá-lo, um dia. Ou deixá-lo na gaveta. Ainda falta decidir.

Mas há um porém: só o li ontem. Em mim há só o espectro dele. Há uma grande chance de, quando lê-lo mais tarde, achá-lo uma droga. Ou, no mínimo, mediano. Vai saber.

Agora, resta a mim esperar. Como sempre.

Enquanto a ordem não vem

Estou precisando de um pouco de ordem. Em tudo.

Arrumar os livros das estantes.

Arrumar os sapatos no armário.

Arrumar as roupas nas gavetas.

Arrumar o CD´s nas prateleiras.

Ajeitar os cabides no armário.

Ler o que eu tenho que ler - ou, ao menos, o que é mais urgente.

Separar as maquiagens que não uso mais.

Decidir o que escrever na monografia que tenho que entregar daqui a duas semanas.

Escrever o tanto que tenta sair e não consegue - ainda que sejam besteiras.

Ah, preciso que passe a pequena febre que se alojou em minha testa hoje de manhã. E a tosse. E o vento. Venta muito, e não há como ser organizada com vendaval. Nem com nuvens chumbo sobre nossas cabeças. A constante pressão do que se anuncia, pesado. A insustentável pressão do que vai desabar a qualquer momento.

É que, apesar de tudo, às vezes sou dionisíaca - embora todos discordem disso.

terça-feira, setembro 19, 2006

E que tudo mais vá pro inferno


Carpe diem.

Aqui e agora.

Instante-já.

Nem me interessa a definição.

Búzios, aí vou eu.

Eu bem que avisei

As pontas dos dedos tocam a pele das teclas, imprimem força, mas o que escrevo não chega a fazer sentido. Recortes de tantas coisas por que passei. Pedaços de tantas coisas que sequer pensei. As palavras soltas, frases desconexas. A tentativa de se tornar compreensível - isso existe?

Às vezes basta brincar. O tlec tlec das teclas preenchendo o silêncio do quarto escuro às vezes é um alento. Como se, vez ou outra, precisasse disso para me sentir mais viva. Como se necessitasse disso para fazer sentido - e isso existe?

Lembro-me de trechos de músicas, releio antigos poemas, vejo as cores dos quadros da semana. Tanto a ser dito, tanto a ser falado, tanto a ser sentido, ainda que sem sentido algum. Pura brincadeira. Exercício. Brin-ca-dei-ra. Um quebra-cabeça, milhares de peças, mas alguma imagem a ser vista? Talvez. Talvez não.

Brin-ca-dei-ra.

É nisso que dá a boa vontade de ler o blog de alguém (o meu, por exemplo): esbarra-se, a todo momento, nas excentricidades alheias.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Da importância da Universidade

Havia muito não se viam. E, então, o doce sabor do reencontro, e as várias risadas. Os mais diferentes assuntos. Do trágico em Nelson Rodrigues ao restaurante no alto da montanha. Dos problemas políticos brasileiros ao novo - lindo, tentador - catálogo da Folic. Cafés, cafés, cafés. Falavam sobre novos cremes, sobre as últimas aquisições, sobre a falta de dinheiro. Planos de viagens interrompidos. Outros tantos planos pela frente. Namorados - os antigos, os atuais, os futuros. Os das outras. Os dos outros. Fofoca, fofoca, e o abraço quente da amizade, sim, amizade sincera.

Nem só de literatura vive uma Faculdade de Letras.

(Guido Viaro. Fofoqueiras.)

terça-feira, setembro 05, 2006

Mural

A SURPRESA
Clarice Lispector


Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.

Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como um ojeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.

(Pablo Picasso. Mulher no espelho.)


No meio do caminho tinha uma pedra...

É só pra deixar registrado. E, neste momento, este blog faz as vezes de diário, sim. É que ontem eu voltava pra casa, pela estrada, quando encontrei uma pedra. No meio do caminho. Era meia-noite, e minhas retinas já um pouco fatigadas só a divisaram a poucos metros, e nem sequer a reconheceram como tal. Era meia-noite, fazia frio, chovia fino e a neblina era forte. Era meia-noite, e a pedra no meio do caminho que não foi vista pelas minhas retinas já um pouco fatigadas acabou com a roda do carro, o que fez com que o pneu esvaziasse imediatamente, o que fez com que eu perdesse o controle da situação, dançando na pista, ziguezagueando por longos segundos. Parei, enfim. Chorei, também. Felizmente, houve socorro rápido - velocíssimo, e em menos de quinze minutos já estava tudo bem. Eu, tremulamente recomposta. Como quem treme de leve depois do perigo.

Se nunca me esquecerei desse acontecimento? Não sei. Sei que hoje, o dia seguinte, foi um dia desconfiado. Receio da chuva, da bruma, do frio. Receio. Medo, mesmo.

Foi só pra deixar registrado.

Já passou.

Da ausência da primavera

É a terceira segunda-feira consecutiva de chuva, neblina e frio. Ao menos, depois de uns meses de seca, a água já vem com certa intensidade, e acordo ao som das pequenas corredeiras no caminho ao lado de minha janela. A paisagem se despiria de branco, se um véu não cobrisse tudo ao redor. Pode ser bonito, pode lembrar o tal fog londrino - mas sei é que me faz espirrar.

O inverno ainda está aqui, cobrindo-me de lã da cabeça aos pés. A lua cheia está para chegar, mas permanecerá anônima por trás das nuvens. Coisas de lua cheia. Mas, há poucos dias - ou há poucas noites -, havia uma lua crescente, amarela, sorrindo de frente pra mim. Não prata, mas ouro no céu. Sem a poeira molhada que insiste em tudo esconder.

Faz frio. Busco os termômetros só para poder documentar essa esquisita mania que as pessoas têm de achar o frio chique. Busco os termômetros, tentando aumentar em mim a sensação do vento cortando os lábios. Masoquismo? Porém, na maioria das vezes, não concordo com os numerozinhos luminosos.

Já é setembro e a primavera está por vir, embora mal se anuncie. Talvez porque dormindo ao som da chuva miúda... Mas quero estar na praça quando se colorirem as copas das árvores, e aquela paineira se encher de flor. Mas, por favor, que não seja numa segunda-feira.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Arrumação


Era necessário que se fizesse a arrumação. Roupas velhas, palavras esquecidas. Papéis amarelos, frascos de perfume empoeirados. Era necessário desprender-se do passado, abdicar, um pouco, de tantas lembranças. Não queria mais carregar consigo tanta coisa inútil. Não que quisesse esquecer, mas não era preciso ter tudo para que o passado se fizesse presente e também futuro. Não, o futuro deveria ser mais límpido, ainda que viesse escoltado por brumas, pelo véu do suspense, ocultando como as coisas acontecem. Ocultando as coisas. Mas, dentro da gaveta, o passado era tangível.

E então reinventou tudo o que passara, tudo o que não fora, um dia, dia algum. Jogou fora palavras velhas, roupas esquecidas. Frascos de perfume amarelos, papéis empoeirados. Jogou fora tanta coisa inútil, tanto de si mesma, para reinventar-se. Substituir por novos? Substituiu-se. Trocando pequenos traços, esquecendo-se de alguma coisa, inventando outras. O passado era melhor? Não era esse o objetivo. O passado era outro. O passado não importava, porque só o que viria a acontecer, envolto em pálidas neblinas, lhe interessava. Por isso, deixou para trás os frascos de perfumes esquecidos, roupas amarelas, palavras empoeiradas, papéis velhos. Renovou-se.

Olhou para frente, inalou pela última vez a poeira do que havia recolhido. Olhou para frente. Com a leveza de quem tem os pés descalços, recomeçou. Diminuíra o peso em seus ombros. Como criança que se vê sozinha frente a um mundo desconhecido, refez o fôlego e passou a arregalar os olhos diante de tudo o que redescobria. Redescobria-se.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Mural

É que havia já algum tempo que não lia nada do Manoel de Barros. E então peguei, novamente, um livro seu, tão disponível na estante, tão agradável ao tato, tão bonito e infantil com um desenho bem rabiscado na capa: Tratado geral das grandezas do ínfimo. Pra ilustrar, vão abaixo dois poemas:

A DISFUNÇÃO

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos

Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.

1 - Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.

2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.

3 - Percepção de contigüidades anômalas entre verbos e substantivos.

4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.

5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.

6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.

7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.


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POEMA


A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios.

Experimentalismo

Enfileirados na estante, os livros estavam lá. Ele olhava o mosaico colorido, formado ao acaso. Havia, porém, um certo nivelamento: os mais altos com seus pares, assim como os médios, e os mais baixos. A estante era bonita de se ler.

Ele sabia que havia muito a ser lido, e começou naquela tarde. Milhares, centenas de milhares de páginas. Desenhos em preto no papel branco - ou amarelado. Rabiscos de lápis em torno dos parágrafos.

Uma ou outra flor de hortênsia perdida no meio de um livro qualquer. Peças de um discurso que também era dele.

(Os dias na Ilha do Governador são quentes e cheios de sensualidade. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento quanto os portais da loja. Se você não me conhece, querido, não podemos ter diálogo, disse e deixou-o perplexo, com jeito de criança a quem se tira o doce. O ar condicionado não estava para tanto; é como se o frio lhe viesse de dentro.)

Tudo estava lá, mas ainda havia muita coisa. Ele se encontrava e se perdia nas páginas esparsas, nos fragmentos das falas de personagens e narradores e demiurgos que os leitores iam, sem querer, absorvendo. Ele era também uma personagem?

Foi quando ele novamente se deu conta, de modo mais nítido do que qualquer outra vez, de que ele também vivia pelas palavras alheias. Queria fazer viver, também. Mas sabia da impossível criação, do quase intransponível obstáculo. Apesar de tudo o que lera, sabia que algo ainda faltava. E, apesar de milhares, de milhões de palavras, havia ainda aquilo que se chamava: o inominável. Que é, freqüentemente, o indefinível.

Sentou-se, pegou um lápis e uma folha de papel em branco. Olhando o vazio plano, exigente, soube, de antemão, que não conseguiria. De volta à escola primária, num exercício de cópia, transpôs, caprichando na caligrafia, um poema qualquer de um livro qualquer de um autor qualquer. Sentiu-se, por instantes, dono daquelas palavras. Sentiu-se o próprio poema, sonoro, trabalhado. O lavor da pena. O alvor do papel. O vazio das palavras que ainda não foram criadas. A impossibilidade de escrever o que ele nem sequer havia sentido.

Repôs o livro na estante, e foi ver televisão.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)