sábado, março 31, 2007

Preparação

Queria escrever, mas as palavras sumiram.

Ou elas ainda estão aqui, mas não fazem sentido.

Ou não se unem, ou não se juntam numa frase inteira que signifique qualquer coisa.

Sei que estou sentindo, bastante. Tanta coisa a ser dita, mesmo que para quem não quer ouvir. Mesmo que seja para quem não ouvirá, em circunstância alguma.

Tanta coisa que passa pela cabeça, e eu com as mesmas palavras de sempre, protelando um sentido qualquer. Adiando uma espécie de organização de idéias, se é que ela é possível. Deixando para mais tarde o que está quase brotando do peito sem que eu dê autorização.

Mas não agora. É tarde, é madrugada. É tarde e não tenho voz nem palavras.

A manhã virá. E também os vários amanhãs. Eu não vou calar. Antes que o grito estoure em meu peito oprimido, virão as palavras, ainda que inúteis. Mesmo que seja apenas para que me livre do peso delas.

quarta-feira, março 28, 2007

Flores, frivolidades e literatura

Já faz semanas - posso dizer meses, acho - que o verde do morros anda salpicado de tons roxos e amarelos vibrantes. Lado a lado, vejo que essas cores combinam entre si. Mais espeçadamente, paineiras com suas flores lânguidas e pálidas, quase românticas. O que me chama atenção, no entanto, são o roxo e o amarelo: segundo sempre ouvi em minha infância, quaresma e aleluia. Quaresmeira, como acho que é o correto. Aleluia, nome repetido pela minha avó, e pela minha bisavó, e pelas alguém do fim do século XIX. E antes. As duas árvores se vestem de flores depois do carnaval. O sofrimento roxo, a ressurreição amarela. E essas cores marcam a aproximação da Páscoa, tal como um cheiro peculiar indica que o Natal está perto. É fácil sentir as épocas do ano.

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Tentei descobrir que bendita árvore é a minha bendita aleluia, espetacular desde não sei quando. Agora elas já estão se despindo; algumas solitárias resistem, no meio do verde, exibindo os flocos intensos e amarelos. Descubro, afinal, o nome: "Cassia Multijuga", ou Cássia-Aleluia, ou Aleluia, para os íntimos. E cito Clarice, Em Água viva: "É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro de arena."

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Mas não vou falar sobre Clarice. Não agora. Que fique o trechinho aí; já é suficiente.

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Também há os cheiros da Páscoa. Em minha infância - e até uma parte de minha adolescência, devo confessar - preparava ninhos com fitas e laços coloridos, e o papel que embrulhara os ovos nos anos anteriores era cortado em tirinhas finas, brilhantes, fazendo um ninho macio para o chocolate vindouro. Mas não era só isso: no sábado de Aleluia, ansiosos pelos chocolates, todos colhíamos flores para cobrir as tirinhas - um verdadeiro tapete. As flores roxas das quaresmeiras eram presença garantida, assim como uma florzinha branca bastante desinteressante, mas que aparece nas matas nessa época e tem um perfume delicioso. Os quilos de chocolate amassavam as pétalas e o cheiro ia se intensificando - os ninhos ficavam no quarto, e era inebriante. Não tinha coragem de mexer nele: queria manter a arrumação, o colorido, o perfume. O chocolate, naqueles momentos, era o menos importante.

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Uma de minhas primas, muito querida, concordou comigo que deveria haver um perfume que tivesse aquele cheiro de Páscoa - ou daquela flor branca desinteressante. Eu disse a ela que criaria um perfume, e ele teria o nome de "Pascale", ou algo assim. Ingenuidade infantil. Um punhado de anos depois, descobri o cheiro em frasco, e ele é hoje um de meus perfumes mais usados. "Floral amadeirado, com notas de freesia, canela, rosa aquática, peônia, âmbar e almíscar. Para a mulher elegante, sensual, alegre e segura de si." Discordo. Eu o uso para me lembrar dos tempos da minha Páscoa de criança.

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Hoje me perfumei saudosamente.

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Pra que a meia dúzia de leitores - talvez menos - não se coce de curiosidade, digo antes que me perguntem: é o L´Eau d´Issey, feminino. Delícia! E o masculino também é um espetáculo.

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É que eu também tenho que dar vazão ao meu lado frívolo.

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Outra hora volto a falar de Clarice. Ah, ela também falava muito sobre maquiagem.

domingo, março 25, 2007

Tão simples

A grande questão, agora, é equilibrar os tantos mil-reais a menos e os quantos mil-gramas a mais.


É?

segunda-feira, março 19, 2007

Joana Joana

Joana. Joana, venha cá, preciso te contar uma coisa. Não se faça de surda, não finge que está dormindo: eu sei que você está me escutando. Anda, Joana, não finge. Escuta. Eu sei que você está bem. Ou melhor, eu sei que você está quase bem. Eu também ainda não estou cem por cento, minha cabeça está estourando, e eu não sinto meus pés. Mas escuta, Joana: seus cabelos estão muito bagunçados; vou dar um jeito neles. Ainda tem algum cheiro de cigarro. Bem que você fala que não gosta de ir a essas boates lotadas. Minha camisa também está fedendo, está sentindo? Logo a camisa azul que você me deu. Não sei como ainda não me deu um tapa por ela estar manchada. Tudo bem, essa mancha sai. Nada que água e sabão não tirem. Nem o cheiro do seu cabelo. Está tão bonito o seu cabelo, mesmo bagunçado. Escuta, Joana, preciso te falar. Espera um pouco, não dorme agora. Escuta. Eu falo baixinho, prometo não te perturbar. Mas é que eu tenho que falar alguma coisa, e não tem ninguém aqui me escutando, Joana. Prometo falar baixinho. Pode ficar dormindo. Eu sei que você não queria sair hoje. Mas mesmo assim você estava tão bonita, o vestido que você pegou escondido no armário da sua irmã. Você se maquiou e ficou tão linda, ficou parecendo mais velha. Sei que você gosta de ouvir isso. O pior é que o vestido da sua irmã também está manchado. E esse é daqueles caros, não é, Joana? Vamos logo logo pro shopping, a gente compra outro igual, ela nem vai perceber. Não: a gente compra um mais caro, mais bonito, ela vai ficar até sem graça. Até porque ela vive falando que eu não presto, que não é pra gente ficar junto, que isso, que aquilo. Aí o cunhadinho vai dar pra ela um vestido muito, muito mais caro do que todos os outros que ela tem. Todos os outros juntos. Eu quero ver a cara dela. Ah, mas deixa isso pra lá. Você ficou linda nele, mesmo, muito mais bonita que ela. Está linda, mesmo com o vestido manchado. Tá vendo, já estou arrumando seu cabelo. Eles estão macios. Só estão fedendo um pouco, mas estão lindos. Ah, valeu a pena, não valeu? A gente bem que se divertiu hoje, Joaninha. Adoro te chamar de Joaninha, adoro a sua cara de quem não gosta de diminutivo. Tão lindinha a minha Joaninha, tão novinha, tão pequena, tão lindinha. Querendo parecer mais velha, querendo parecer ter dezoito anos. Quando tiver dezoito anos vai querer voltar pros dezesseis. Talvez não com dezoito, mas quando tiver vinte, eu tenho certeza. É uma idade linda. E você está tão linda, Joaninha. Nem parece que passou a noite inteira acordada. Viu, nem borrou a maquiagem, como você estava com medo. Eu sei, eu não deveria ter falado aquilo com você. Mas você me perdoa, não é, Joaninha? Isso, fica de olhos fechados, eu sei que você está me escutando. Você me perdoa por ter falado aquilo tudo, não é? Mas, você sabe, tinha aquele monte de marmanjo perto de você, e você sorrindo, eu sei que você não fez por mal, mas você sabe... Desculpa. Prometo que não faço mais. Você estava mesmo linda, parecendo mais velha no vestido da sua irmã. Desculpa por ter exagerado na bebida, também. Desculpa. Prometo que não vai acontecer mais. Estou com dor de cabeça, queria que parasse. Vai passar. E você, tá sentindo alguma coisa? Está com o rosto tão lindo, com a maquiagem perfeitinha... Você passou direto, ninguém parou você na porta da boate. E ninguém ia parar. Acha que alguém ia parar você, comigo do seu lado? Nada. Eles sabem com quem podem mexer. Ah, não importa. Você estava linda, dançando, dançando, dançando feliz. Eu fiquei vendo de longe. Eu via como você estava linda, feliz, dançando. Todo o mundo olhava pra você, Joana. Tão linda. Tão loirinha, tão adulta. Eu fiquei te olhando, de longe. Desculpa eu ter falado aquilo tudo, mas tinha muito homem perto de você. Desculpa, você chorou, né? Mas fica tranqüila, a maquiagem nem está borrada. Depois, também, você fez o quê? Eu nem vi, tem uma hora que eu não me lembro direito das coisas, eu estou confundindo tudo, sabe? Isso é tão estranho. Você vai ter que me ajudar. Ah, lembrei. Lembrei mais ou menos. Depois eu encontrei você na porta, não foi? Desculpa, eu briguei com você de novo. Mas eu nem me lembro direito por quê. Ah, não importa. Se eu não me lembro foi porque não foi importante, não é verdade? E você ainda queria ficar longe de mim... Até parece que eu ia te deixar sair sozinha daquele lugar, voltar sozinha pra casa. Tá maluca? Tão linda a minha Joaninha, não ia mesmo ficar andando sozinha de madrugada. Não tem táxi, não. Eu não te busquei? Eu te levo, deixa comigo. Não foi o que eu te falei? Eu coloquei até a música que você adora. Ah, Joana, me deu uma vontade louca de te beijar, minha linda. Linda maquiada, nesse vestido. Mesmo com o cabelo bagunçado e fedido. Não se preocupe, sai tudo com água e sabão. Eu prometo que vou te lavar, você vai ficar feito nova. Mais novinha ainda. Uma criança. Uma criança loirinha, tão linda, tão adulta. Pode ficar dormindo quietinha, eu cuido de você. Eu só quero chegar logo em casa. Eu só quero te deixar logo em casa. Mas não se preocupa, logo a gente sai daqui. Logo alguém ajuda a gente. Joaninha, eu prometo que a camisa que você me deu vai ficar linda. E o vestido da sua irmã também, e se não ficar, eu compro outro muito mais caro. Joaninha, vai ficar tudo bem. Daqui a pouco alguém tira a gente daqui. Desculpa eu ter exagerado. Não queria brigar com você, mas você me entende, não entende? Enquanto isso eu ajeito os seus cabelos. Daqui a pouco o cheiro sai. Daqui a pouco a gente sai daqui. Eu te prometo, Joana, eu tenho que te falar isso, eu prometo que eu não brigo mais com você. Eu prometo que não vou mais exagerar na bebida quando a gente sair. Não vou mais obrigar você a vir comigo. Desculpa, Joana, eu exagerei. Mas eu prometo que o vestido vai ficar limpo. Os seus cabelos também. Eu nunca vou me esquecer dos seus cabelos, Joana.

O elogio da cidade

É que é uma delícia passear nas ruas de Petrópolis durante os dias de verão - mesmo o forte verão, o verão seco, o implacável verão.

Há um espetáculo silencioso e vibrante de cores entre os verdes das árvores. E há as sombras.

























Ornam as ruas de paralelepípedos irregulares árvores povoadas de bromélias coloridíssimas. E eu não me canso de olhar para o alto, tentando descobrir o mundo que existe um pouco mais distante do alcance de nossas mãos.

E, tão diferente de alguns anos atrás, acho Petrópolis um lugar quase perfeito para se viver. Apesar da poeira do Centro, apesar da fixação pelo alargamento de calçadas que nunca acabam. Percebo, cada vez mais, que sou daqui, e que não me enxergo longe. Talvez não enxergue longe. E sinto-me bem assim.

domingo, março 18, 2007

16 de março

Março não poderia passar sem suas águas.

Era feriado quando senti novamente o cheiro de terra molhada, e comemorei silenciosa a volta da chuva. O céu escurecido de nuvens cinza-chuva me alegrou mais que o sol inclemente dos últimos dias. Um vento mais forte anunciou raios ao longe: eu vivi a delícia de sentir o céu desabar sobre tetos e cabeças e flores.

Petrópolis não passaria sem chuva nas comemorações de seus 164 anos. E a chuva veio como um presente, refrescante e fértil.

As montanhas já começaram a perder o tom empoeirado - há as infinitas variações de verdes a serem vistas. Ah, e também as paineiras que estão florindo atrasadas, as aleluias, as quaresmas, as árvores de flores entre o vermelho e laranja, que parecem de papel crepom.

Eu começo a ter o outono dentro de mim. Fechei os olhos e tive a sensação do frio que virá.

E retorno à delícia de fechar os olhos e, com as luzes apagadas, ouvir somente o barulho da água que corre entre os obstáculos dos caminhos.

quarta-feira, março 14, 2007

A internet, este oráculo

Quando o dia é dos piores, definitivamente dos piores, abre-se o e-mail e, casualmente, em mais uma das malas diretas de mais uma das livrarias virtuais em que já comprei antes, vejo a oferta quase irresistível de dois ultra-sucessos da auto-ajuda: "Casais inteligentes enriquecem juntos" e "Nunca desista dos seus sonhos". Vou tentar.

Ah, esse abominável gênero... Ah, essa receita infalível de felicidade que realmente não falha - aos autores de tais obras indispensáveis. A perfeita associação entre o materialismo e o desenvolvimento da pessoa-humana.

E eis que meu sorriso vem de um imperativo extremamente clichê no título de um livro de auto-ajuda. Bem, hoje ele ajudou.

segunda-feira, março 12, 2007

Coffee Break

Enquanto as pessoas se apressavam nas calçadas largas, ele tinha o mesmo olhar parado, cruzando o obstáculo das pernas que se cruzavam. De longe a cidade viva pareceria sonolenta - tão sonolenta quanto ele, de mão estendida, em concha. Os sons começavam a se fazer distantes quando sentia o choque frio do metal em sua palma. O desenho da moeda não era muito animador. Ainda assim, levantou-se, empertigado, com algo de renovado. Entrou na padaria e pediu, com alguma empáfia, um café - era o que dava. Quando a menina que vendia balas encostou levemente na camisa do taxista suado, ele pensou que não se podia nem mesmo tomar um café sossegado sem que as pessoas lá fora esfregassem em sua cara a realidade cheia de imperfeições.

Deleite

A chuva não vem, mas o colorido dos morros está cada vez mais intenso: árvores irrompem em amarelho-brilhante, em roxo-alegria, em vermelho-alaranjado. Árvores irrompem em perfumes nas noites pálidas e quentes.

Acho que nunca percebi, como ultimamente, a riqueza dos contornos que me limitam - nunca percebi, ávida de detalhes, as florações das árvores cujos nomes não sei.

Vi uma paineira florida que fazia um tapete rosado sobre os paralelepípedos. Vi uma árvore cheia de flores de uma indefinível, rara e delicada cor-de-cinza.

Então me surpreendo com as cores que meus olhos podem ver contra o azul incrível dessas semanas sem chuva. E agradeço.

sexta-feira, março 09, 2007

Entorpecente

Porque a vida é curta e, às vezes, fosca. Apesar do céu azul brilhante das tardes: há o cheiro pesado das semanas secas. Apesar de março. Apesar do verão.

Passam as horas sem razão alguma, enquanto o tempo parece estacionado no dia anterior - por vezes. A cada segundo transposto, o relógio balança sobre a mesa - vibra o momento que morre, vibra o momento que nasce. Curto.

Um sono, algum torpor. Há uma asfixiante falta de palavras. A voz rouca me mostra exaurida.

Passam as horas. Um cheiro de fumaça me deixa quase tonta. E, lá fora, as pessoas e os carros estão anoitecendo. Olho para o telefone, mas ele não toca. Procuro as pessoas, mas elas não estão.

E assim me arrasto, vagando. Até que chegue a noite e seu descanso, bem mais tarde. Até que chegue a hora em que o mundo vibre, noturnamente luminoso. Até que me venham as palavras acumuladas durante as horas mudas.

Pressiono contra a mesa bege o mosquito que me sugou um pouco do sangue, do ânimo. Pressiono meus lábios, prisão. E rompo o momento tenso dos segundos curtos ecoando na noite entorpecida. Abertos os olhos - o mundo continua o mesmo.

Eu que me ausentei.

quinta-feira, março 08, 2007

Obscenidades

As grandes livrarias, modernas, são lugares tentadores, coloridos, perfumados. Agradáveis. E, ainda, têm conteúdo. Um conteúdo heterogêneo, mas conteúdo. É claro perceber uma mudança na fisionomia da pessoa que, da calçada, transpõe a porta envidraçada. O olhar com alguma forçada concentração, simulada atenção. Leitura de orelhas de livros geometricamente organizados sobre balcões. E, depois, a ida quase casual para a seção de auto-ajuda.

Não há grandes livrarias em Petrópolis. Aliás, quase não há livrarias em Petrópolis. Mas há uma filial de uma grande rede, cuja loja na cidade deve ser equivalente à vigésima parte da Fnac do BarraShopping. Mas não faltam livros de auto-ajuda. Nem o certo ar dissimuladamente concentrado que as pessoas adquirem quando cruzam a fronteira do território cheio de conteúdo.

Mas não é sobre isso que estou escrevendo. Estou só contando um pequeno episódio em que observei algo realmente curioso. Fui à livraria comprar "O movimento pendular", do Alberto Mussa - a propósito, um ótimo livro, diferente de tudo o que ja li antes - e, enquanto esperava que a moça que me atendeu olhasse o preço do livro, deixei o olhar cair sobre uma mesa à esquerda, onde se empilhavam, organizadamente, as mais diversas e coloridas obras. Uma capa preta com letras brancas: "O doce veneno do escorpião". Já faz alguns meses que a referida obra foi lançada, comentada, resenhada, lida, ganhando manchetes e destaques de jornais e revistas - para o bem e para o mal. Principalmente, para o mal. Meses depois, ninguém mais parece dar pela existência dele. O que é totalmente natural e, mais que isso, previsível.

Abro o pequeno volume. Há qualquer referência ao fato da dupla personalidade (?) da escritora (?): Raquel, a menina; Bruna, a mulher. E, nos trinta segundos em que a atendente pesquisa o preço do livro do Mussa, leio os parágrafos iniciais da primeira aventura narrado no livro.

Como todos sabem, o livro conta a história de Bruna Surfistinha - a tal Raquel sei lá das quantas, a tal menina -, jovem de classe média que, depois de abandonar a prostituição, decide compartilhar suas experiências. Todos imaginam que tipo de coisa se pode encontrar num texto com essa proposta.

E lá estão os primeiros parágrafos da primeira aventura narrada no livro: nada que surpreenda, até a segunda página. Há a chegada de um homem, um início de conversa, um início de função. E é aí que chega a surpresa: deparo-me com uma frase composta por, entre outras palavras, "c..." e "bu..." . Isso mesmo. "C..." e "bu..." . Em um livro teoricamente escrito por uma ex-prostituta, em que se narram os acontecimentos de seu dia-a-dia.

O livro do Mussa custava uns trinta reais - a leitura foi interrompida. Mas algo me perturbava. Quem havia escrito a tal frase? Raquel, a menina? Bruna, a mulher? Drama. Fiquei chocada com a delicadeza da autora-narradora-personagem que tenta preservar seus leitores - e a si mesma? - de um vocabulário tão chulo. Apesar do restante do livro. Apesar de tudo.

Errado estava Rubem Fonseca, que colocava os palavrões inteiros em seus contos. Afinal, "Feliz Ano Novo" é realmente chocante. Tivesse ele escrito "pu...", "me...", "fo...", e talvez nem tivesse problema com a censura. Afinal, o palavrão é realmente algo chocante, algo vil. Não a violência. Não a prostituição. Não a narração escancarada de aventuras sexuais com o simples propósito de narrar escancaradamente as aventuras sexuais. O óbvio.

Seria eu conservadora demais?

Depois disso, comprei minha indulgência trazendo, junto com o livro do Mussa, um volume do Fernando Pessoa, que dividia espaço com a tal primeira produção literária (?) da menina Raquel, da mulher Bruna.

Ainda bem que as livrarias são lugares coloridos e cheios de conteúdo. Ainda que heterogêneo.

sexta-feira, março 02, 2007

À espreita

Guarda as palavras do teu silêncio nas noites insones:
o barulho não vale o que sentes sem saber.
Nenhum de teus gritos dá a medida que desconheces,
a medida de ti, das horas, dos quilômetros além de teu alcance.
Guarda o teu silêncio da madrugada e seu profundo significado.
Descobre-te sem sentido quando a ordem parece intacta.
Guarda as palavras sem sussurros dos olhos abertos:
o sangue que pulsa é teu momento eterno.
Guarda tuas noites nas palavras esparsas.
Encontra-te na vigília.
Vigia-te os sentidos para que nada te escape.
Escapa da tua lógica crua e sufocante.
Sufoca o teu gemido de indagação.
Indaga-te sem aguardar resposta.
Não esperes que a manhã chegue para imprimir no silêncio branco
os longos cinco minutos de espanto e sentido.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)