sexta-feira, agosto 25, 2006

Dificuldade

É que é quase impossível tentar algo novo quando tudo - ou quase tudo - já foi escrito... Só me resta, mesmo, citar.

Mural

É que peguei um livro da Hilda Hilst, e estou lendo com atenção. Sentindo.

Por isso, cito, porque repetir me faz sentir mais intensamente. Como se repetisse, em voz alta. Não é propriamente para entender. É tocá-lo, sorvê-lo, cheirá-lo. Senti-lo inteiro, e sentir-me, também...

DA NOITE

VIII

Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
E sou crível e antiga como aquilo que vês:
Pedras, frontões no Todo inamovível.
Terrena, me adivinho montanha algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam.

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VIA ESPESSA

XII

Temendo deste agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:
- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Onisciente à tua vida?

Um mundo

Às vezes tenho vontade de escrever sobre a vida, só. Só isso - como se fosse pouco.

Um aluno me abraçou dizendo que gostava de mim, e eu recebi um desenho de uma menina, caprichosa, num gesto de carinho. Eu sorri quente pra eles.

Outro aluno me dizia, vibrando, que o Kiss - sim, o grupo de rock - estava entre nós. Não conseguia entender tudo o que dizia. Sei que ele também citou Guns N´Roses, e eu fiquei tentando, em vão, ensiná-lo a pronunciar corretamente.

Outro aluno me contou que comprou um livro que denuncia as selvagerias da tropa de elite. E disse, consciente, que o vendedor havia lhe avisado que não leria lá uma históra "cheia de cavalheirismo". Sabia que encontraria palavrões, e que sentiria medo. Mas se interessou pelo tema, e pela leitura. Ele está só na sexta série, e não levou o livro para me mostrar porque ficou com medo de amassá-lo.

E há as crianças, centenas, milhares, que sofrem aqui por perto. Num raio de 500 metros, 50 km. No mundo todo.

Há a menininha de cinco anos que morre de medo de exame de sangue, mas terá a coluna reconstruída daqui a um mês. Não anda, mas brinca. Sofre, mas sorri, tímida.

Há o menino que operou a perna. A pele, manchada, denuncia as condições - nada boas - em que ele vive. O menino chora, e a mãe lhe dá um beliscão silencioso, promessa de alguns tapas mais tarde.

Há o mundo inteiro. Há um mundo que grita dentro de mim, e é um mundo que não é suspeitado. Há pessoas que nunca terão seu lugar. E são apenas crianças.

O futuro pela frente. E todas sorriem. Com ou sem esperanças, com ou sem família, com ou sem refrigerante no fim-de-semana. E todas, no futuro pela frente, serão parte deste mundo que grita, ainda que silencioso.

Às vezes tenho vontade de sentir a vida, só. E emudecer.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Pequeno fragmento de um miniconto inacabado

Sem sentir, ela deu um pequeno passo, que se seguiu de um maior, e de outro ainda mais longo. Sem ser sentido, o pirulito de morango ia se desfazendo em saliva e açúcar na língua da menina, e os olhos se dispersavam nas cores que se cruzavam à sua frente. A menina parou; e a saia surrada dançou no súbito vento provocado pela passagem de um caminhão. Alguns fios de cabelo voaram na direção do pirulito de morango que, ainda assim, a menina levou à boca, sem perceber. O céu, àquela hora da tarde, não era exatamente azul, pois a fumaça que subia das fábricas e de todos os carros, velozes, formava uma nuvem acinzentada. Sol havia, e ele castigava. Fazia muito calor, e a menina de saia surrada ia se desfazendo em suor e poeira.

Os carros zuniam perto do meio-fio, e o barulho aumentava ainda mais quando, com bastante freqüência, aproximavam-se do aeroporto os aviões cheios de turistas de olhos claros e pele rosada, ávidos pelo mar azul, mas que sequer suspeitavam aquela paisagem cinzenta. O avião zunia, e por vezes deixava algum rastro no céu. Aquele não era um lugar onde alguém ficaria: os turistas no avião, os motoristas velozes na pista. Trabalhavam, passeavam. E passavam. Também passaria a menina, mas não para longe - do outro lado da pista estava a sua casa, acinzentada pela poeira dos automóveis.

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domingo, agosto 20, 2006

Das comemorações

Na sexta-feira saí pra comemorar antecipadamente minha pré-balzaquice. Na verdade, apenas quatro pessoas bebendo caipivodka de morango, e nem parabéns houve (que bom!). Houve, no entanto, uma pizza de chocolate com morango, por conta da casa. Bom, muito bom. O grupinho deixou a pizzaria quase às três horas da manhã, quando os funcionários já bocejavam - e nós também! -, e torciam para que aqueles habituais clientes fossem embora o quanto antes. E o Rio de Janeiro lá embaixo, calmo como são as coisas ao longe.

Acordei no sábado, antevéspera do bendito dia. Vi minha irmã tentando ligar, em vão, o computador. Sim, ele havia dado problema na sexta à tarde; o Windows não queria iniciar (recuso-me a usar o tal outro verbo!) nem por um decreto, nem por meios mais violentos. Não adiantava fazer uma chantagenzinha, dizer que "logo no meu aniversário"... Sem apelação, sem piedade. Levo eu a maquininha para o técnico, com um medo incrível de ter perdido todos os arquivos que não - eu disse não - têm backup. E o técnico me dá a solene resposta de que só poderá ver o que houve com ele na terça de manhã. Enquanto isso, fico em suspenso, como quem espera o resultado de um exame decisivo: tentando esquecer, mas morrendo de pavor quando a idéia vem à cabeça. Enfim, esperemos. Para adoçar, pelo menos como uma fatia de torta de morango. Sim, é tempo de morangos.

Como é habitual, o tempo fica ruim no meu aniversário. Será que nasci sob o signo da chuva? Parece que só faço chover. O fato é que havia sol até poucos dias, mas o fim-de-semana foi se aproximando junto com nuvens carregadas, e um frio que, anuncia o Climatempo, pode chegar aos três graus - no que, sinceramente, não acredito muito. De toda forma, a chuva que já se fazia presente fez com que programasse meu fim-de-semana em frente da televisão: passo na locadora e carrego uns filmes pra casa. No sábado à noite, durmo durante a história - lindinha! - que já havia visto, antes mesmo da primeira meia hora.

O domingo amanhece com vento, e nuvens carregadas que vão e vêm no céu. Vou almoçar na casa do namorado. Morangos de sobremesa. Depois, assisto ao segundo filme do fim-de-semana, uma comédia francesa que beira a idiotice (mas não posso negar que também me fez rir). Como vingança, obrigo meu namorado a assistir "Língua - Vidas em Português", que é um bom filme, interessante, embora esperrasse mais dele. E o temporal inventou de cair no exato momento em que fui à locadora.

Como chocolates, tomo sorvete - de torta de morango. É tempo de morangos. E chove. (Prometo não falar aqui de nenhuma datilógrafa nordestina, virgem, e que gostava de coca-cola.) Como chocolates, tomo sorvete e bebo coca light. Estou sem computador por alguns bons dias - difícil se acostumar a viver sem -, e faço aniversário numa segunda-feira fria e chuvosa. E não, não é feriado, pelo contrário: amanhã terei um dia cheio, sem lugar para comemorações.

Ainda não é dia 21 - sabe Deus o que ainda pode acontecer até lá?!? Quem sabe não terei boas surpresas...? Afinal, só se comemoram 27 anos uma vez na vida -assim como os 15, os 22, os 48 e os 89. Mas isso deixemos para amanhã. Por hoje, o frio ainda não se instalou por completo e a chuva cai, chatinha. Amanhã, certamente, haverá chuva chatinha e frio bem mais cortante. Não, meu aniversário não poderia ser diferente.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Agora não

Minha vida está sempre esperando pelo dia seguinte. É o amanhã, é o depois de amanhã. É o daqui a pouco, é o quando der. O agora não tem vez. O agora quase não se percebe, mas dói. Vivo suspensa.

Está um pouco mais frio hoje. Desceu alguma neblina, vinda dos lados da estrada. O ar ainda está pesado, mas a chuva já se anuncia. Não sei se pra hoje. Não sei se pra amanhã. Mas ela vem. Provavelmente, no meu aniversário, que é um dia, quase sem exceção, de chuva. Dia de chuva e frio. E é o que a previsão do tempo anuncia pra próxima segunda-feira.

Agora não chove. Espero pela chuva, espero por qualquer coisa que torne o ar mais leve e lave a poeira das ruas e faça com que me sinta melhor e me deixe menos ansiosa. Espero por qualquer coisa que só acontecerá no dia seguinte, ou no outro. Ou no outro, ainda. Mês que vem. No verão. Em 2009.

Por enquanto, um silêncio forçado. A palavra não é dita, mas eu chego a entreabrir os lábios. Por enquanto, o céu está acinzentado e algum sabiá faz festa para além das casas todas. Posso ouvir o sacudir das penas.

A poeira das ruas me deixa embaçada. E eu não sei quando tudo mudará. Eu não sei se tudo mudará. Ou se a poeira já se instalou em meus olhos, acompanhando-me. Tudo é baço. Tudo pesa. Tudo espera, suspenso. Inclusive eu.

A neblina veio cinzenta, diferente. Quase uma fumaça, como a do incêndio na beira da estrada. Mas não chove. Quem sabe, amanhã. Ou no dia seguinte.

Do curso sobre Pessoa, que eu não vou fazer

ADIAMENTO
Álvaro de Campos

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-se toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

quarta-feira, agosto 16, 2006

Quarta-feira, Agosto 16, 2006

Reunião de manhã, logo às sete. Propostas de avaliação educacional. Até o meio-dia.

Corro pra almoçar no centro da cidade. A tarde é muito azul, e brilha. Faz um calor atípico para esta época do ano. Mas a ausência de chuva faz com que eu sinta saudades da névoa branca e úmida ao redor das árvores. O ar seco grita, quase ferindo.

Corro pra casa. Banho. E corro pro trabalho. Não tanto, porque encontro três ônibus da Transalfa no caminho. E o pior que pode acontecer quando se está atrasada é topar com ônibus da Transalfa no caminho. Os motoristas devem ter feitos curso de tranca-rua. Todos eles. Sem exceção.

Mas chego ao trabalho, dois minutos atrasada. Ao menos não a ponto de comprometer a reunião. Isso mesmo, mais uma reunião. Na sombra da sala, vendo pela vidraça a tarde que brilha. E a tarde que cai.

A reunião acabou, mas o telefone toca. Não, às vezes não se recebem notícias muito boas. E o coração acelera do nada.

Já é quase noite. Sete horas, corro pra sala. Corro, corro, corro. E falo, falo, falo. Minha garganta seca com o ar. Quero água, mas não quero parar de falar. Ô vício.

Toddynho no lanche. Corro pra outra sala. E falo, falo, falo. Turma cheia, meninas e mulheres faladeiras e engraçadas. Falo alto, alto, alto. Bebo água, mas não é suficiente. Só fui embora com o badalar do sino da capela.

Corro, corro, corro. Encontro o namorado. Abraço quente no dia cansado. Das sete da matina às dez e meia da noite, pequena pausa pra almoço. Sem boas notícias. O dia é azul, mas eu queria a chuva.

Meia horinha, corro pra casa. Corro, corro, corro. Já não há mais trânsito, e eu me sinto livre na estrada.

Tem dia em que a gente cansa.

quarta-feira, agosto 09, 2006

E mais um pouquinho...

A COMUNICAÇÃO MUDA
Clarice Lispector

O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.

Mural

É porque aqui também é lugar de escrever - ou transcrever, é melhor - textos de que gostamos. No caso, pra variar, um pedaço de uma carta da Clarice pra irmã, Tania. Bonito, bonito.

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Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Não sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo. (...) Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Minha irmãzinha, ouça meu conselho, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

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Chega até a doer.

terça-feira, agosto 08, 2006

Trilha sonora

Ando ouvindo muito Tom Jobim. O que não é ruim, longe disso. Mas as canções têm se tornado, de certo modo, trilha sonora dos últimos dias.

Depois de dias envolta em neblina, amanheço ensolarada. Não, ainda não está quente, mas o sábado brilha no verde renovado, no céu azul que revigora. Saio acompanhada. A manhã de sábado dá um novo fôlego à vida. É bom voltar a ser colorida.

No carro, Tom Jobim toca piano, e cantam as mulheres... CD "Inédito", faixa 20:

ESTRADA DO SOL
Tom Jobim - Dolores Duran

É de manhã
Vem o sol, mas os pingos da chuva
Que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção

Quero que você me dê a mão
Vamos sair, por aí
Sem pensar no que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nossa manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão vamos sair pra ver o sol

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E deixo pra trás a chuva, a neblina, os sonhos, as lágrimas. Canto junto, repetidas vezes, mesmo sem poder - ou em breve estarei afônica. Canto e batuco, sem ritmo algum, batendo o anel no volante. Nós nos damos as mãos, e o sábado colorido, precioso, tem trilha sonora de Tom Jobim.

Cenas de Julho: Os Pretos

A cidade tem a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, como todas - ou quase todas - as cidades do período colonial brasileiro. A Irmandade de Nossa Senhora dos Rosários era o lugar dos escravos católicos. Aqueles escravos que, como disse Vieira, eram como abelhas: faziam o mel, mas não aproveitavam o doce do mel. Trabalhavam nos engenhos de cana, mas não havia açúcar no amargor de suas vidas. Retiravam o ouro das encostas, dos rios, dos vales, mas suas vidas eram opacas.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos traz ouro em seu interior - mas fica pálida numa comparação com a dos brancos. No entanto, sendo mais singela, é também mais aconchegante. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos é marca de um passado colonial e escravocrata, diria qualquer pessoa que sabe um mínimo de história.

A cidade, como qualquer outra cidade, tem uma praça. E tem escolas públicas, com crianças brancas ou negras, que dançam quadrilha numa festa julina de que os turistas acabam participando. Como em qualquer outra cidade, as mães das crianças tiram fotos. E, na loja em que gravo as fotos num CD, já que havia fotografado de tudo, duas mães, olhando as fotos, tecem comentários sobre a festa. As crianças estavam lindas, dançaram bem. Foram espontâneas. Tudo foi um sucesso. "Eu só não achei muito certo a professora ter feito os casais separando as mais clarinhas das escurinhas..."

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não é só mais uma atração turística.

Cenas de Julho: Os Mortos

A cidade é antiga. Antigos os prédios, antigas as igrejas. Antigo o sagrado ouro das igrejas. Mais antigas ainda, o desejo que o homem tem desse ouro. Nas antigas igrejas cheias de ouro, a cidade enterrou seus mortos. Piso devagar, de mansinho, evitando o barulho. Como se pudesse acordar os mortos em tão luxuoso túmulo. Apenas os números marcando sua presença. Anônimos, portanto, em meio a tanto ouro. Silêncio no antigo assoalho da antiga igreja, sem palavras.

Por fora, túmulos não tão antigos. Na cidade antiga, o cemitério também é atração turística. Os de fora são menos anônimos que os de dentro, embora descansem com muito mais simplicidade. Na grama, no tempo, as viuvinhas passeiam entre cruzes mal erguidas. Pequenas cruzes de madeira, de ferro, de concreto. Todas baixas, tímidas, acanhadas, ao lado da suntuosa igreja dourada. Manuscritos os nomes dos mortos. Sentidas saudades cheias de erros de grafia. Uma ou outra flor no ferro forjada, numa cruz até alegre. Sobre um ensaio de lápide na grama, flores coloridas, berrantes, feitas de garrafas de refrigerante.

Entre nomes e apelidos, datas já apagadas, alguns túmulos anônimos. Em alguns lugares, a grama recém-colocada. Piso de leve, não quero fazer barulho num cemitério. Mas os olhos, ávidos. De todos, os olhos ávidos. Que histórias não poderiam ser contadas? "Aqui jas os restos mortais de José Pedro do Nascimento." A ironia do nome. "Aqui dorme Antonio de Salis Ferreira. Apelido de Pacotinho. Nasçel 31 de agosto de 1909. Faleçel 6 de março de 1978." Qual teria sido a vida de Pacotinho? Teria sido ferreiro, o Pacotinho? Teria contribuído para o progresso turístico da cidade? Teria visto o crescente ir e vir de pessoas em sua terra, observando, curiosas, seus mortos? Teria forjado alguma cruz para aquele mesmo cemitério? E as crianças que corriam entre os túmulos silenciosos imaginavam suas histórias.

Um grupinho de meninas buscava sinais de que lá estava Caroline. "Tem que ser bem pequenininho, porque ela morreu na barriga da minha prima." Caroline não viu o ouro da igreja, Caroline não viu as flores de plástico pintadas com tinta plástica. Caroline virou atração turística, ao lado da igreja dourada. E virou personagem de qualquer história que qualquer um dos que lá passam ininterruptamente pode contar.

terça-feira, agosto 01, 2006

Cenas de Julho: O Lugar

Outro verde em meus olhos. Não o verde ostensivo das montanhas a que estou acostumada, mas um verde mais pálido, desconfiado. Cor de terra, cor de chão. A poeira em meus olhos. Não, não chovia fazia tempo, e o céu era de um azul opressor. Azul que oprimia as casas de telhados baixos.

A cidade pequena e cheia. Bonita. Antiga. Brilhando em meio à poeira. E um paredão que escondia o sol e fazia com que, de um momento para o outro, o frio também rodopiasse junto com as crianças na praça.

Tudo se observava pelas janelas de uma cidadezinha qualquer.

Cenas de Julho: A Estrada

A estrada, mais uma vez, se abria à minha frente, em suas curvas e montanhas, no anonimato dos vários carros apressados que passam ser pedir licença. A estrada, enfim, é algo mágico, transportando-nos para um outro mundo. Transporta-nos, mesmo, para fora de nós.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)