sexta-feira, agosto 31, 2007

Antes que fosse tarde

Enquanto a porta não se abria, respirava quase sufocado por todo o silêncio de nossas vidas. O barulho de chave virando: olhos quentes e pesados me abraçaram sem sorrisos. Senti o ombro direito úmido e as mãos trêmulas. E não ouvi o barulho de chave virando novamente.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Notícias

"Tô com dor de dente,
dor de dente,
dor dente.

Como dói o dente,
dói o dente,
dói o dente.

Falar com a mamãe?
Jamais!
O dentista dói muito mais!"

Pois bem: hoje eu me livrei do siso que me inflamou a gengiva na semana passada, e ganhei uma dor de dente nova... Bem que Pedro Bandeira (é muito lindinho o livrinho Cavalgando o arco-íris, cheio de poeminhas pra pirralhada) avisou...

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Em compensação (ou foi alucinação causada pelos analgésicos), vi que as cerejeiras - algumas, ao menos - estão florindo agora, quase setembro. Fora da ordem?

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E também os ipês-amarelos: um espetáculo. As copas das árvores da Praça da Liberdade já se colorem, e eu vejo que a primavera está a caminho.

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O que não impediu, em absoluto, de que uma inesperada frente fria tornasse meu aniversário, mais uma vez, em um dia branco, frio e úmido. Não há melhor previsão do tempo do que esta: 21 de agosto, chuva.

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Pelo menos passei meu aniversário sem dor de dente. Mas debaixo das cobertas.

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E volto, aos poucos, a escrever alguma coisa neste espacinho tão querido meu, depois de escassa produção. Ainda que escreva algo que não tem a menor relevância. Ao menos, tento voltar ao hábito.

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Mas ainda não posso voltar ao hábito da fotografia, muito embora as árvores já estejam se colorindo. Para completar, minha câmera está no conserto.

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Mas tudo isso passa: conserto da câmera, dor de dente, ausência, cerejeiras em flor.

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Preciso, muito mesmo, de verdade, logo, logo, de uma inspiração qualquer que me faça escrever algo que preste - ou, ao menos, que me satisfaça minimamente. Enquanto ela não vem, encho a tela em branco com qualquer coisa.

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(Parabéns aos que conseguiram chegar ao fim do post; a perseverança é uma virtude!)

quinta-feira, agosto 23, 2007

Definição

Não é só essa tua voz entre riso e rouca
Penetrando os ouvidos e a boca
Nem somente o teu cheiro no meu ar noturno
Denso e quente, leve e puro

É a certeza dos minutos imprecisos
Quando me roubas tempo e palavras
É o sorriso estreito com que me afagas
Quando teus olhos não alcançam os meus

É toda a incerteza que paira por breves segundos
Até que se desfaçam silêncio e soluço:
Mãos quentes e lentas que rompem a bruma
E o véu que me cobre à espera de ti.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Crônica pré-nupcial

É sabido que, em pouco menos de dois meses, estarei atravessando o tapete vermelho, cruzando poucos metros que me tornarão, finalmente, a Sra. Carvalho - caso eu fosse trocar o meu nome. Não, queridos leitores, continuarei a assinar o mesmo nome desde o meu Jardim de Infância, desde a minha Certidão de Nascimento e exame do pezinho, nada diferente. As feministas podem se acalmar: não há nesta renúncia ao sobrenome masculino qualquer traço de desejo de emancipação, afirmação da individualidade, luta contra a silenciosa e avassaladora dominação masculina que nós, tacitamente, aceitamos. Na verdade, o que não dá para combinar é o meu sobrenome: Sá Klôh. Pensei em várias saídas - todas as combinações possíveis -, mas nenhuma me pareceu boa o suficiente. Assim, adio minha decisão para a ocasião da chegada do primeiro filho, o pobre que vai ter que conviver com um sobrenome, no mínimo, diferente.

Mas não há muitas outras decisões adiáveis. Há que se deliberar sobre as cores da iluminação - e logo. Li numa revista que é out usar luzes coloridas - exceto âmbar, verde e branca (mas aí não é colorida). Mesmo assim, quero o lilás - ainda que mesclado a luzes brancas. Vi essa idéia numa outra revista de noivas.

Noivas: espécie complicada. Há todo um mundo à parte. Grupos. Motivações, desejos, aspirações. (Uma jovem nubente, por exemplo, se queixava da falta de opções de forminhas de doces. Estava desesperada. Por favor, não critique.) Outros assuntos, temores. Uma outra língua. Uma outra moeda - só pode ser essa a explicação para o absurdo que cobram por qualquer peça ou serviço quando a palavrinha mágica casamento, ainda que entre os dentes, é pronunciada. Um outro fuso-horário, talvez. Uma outra rotação? Tudo gira em torno do grande dia - e a sensação que se constrói é a de que, depois desse grande dia, vem o vazio.

Mas não há como se preocupar com o depois. Até o grande dia há muito para se ver, há muito para se discutir, há até unhas para roer - mesmo que se saiba que você deve conservá-las, intactas, perfeitas. Há o desespero para não se cair no mau gosto que impera nesse submundo de alvas sedas, rendas francesas e histeria coletiva.

Compro uma revista qualquer em uma banca qualquer. Lado a lado, as capas se mostram trazendo lindas mulheres - moderníssimas, é bom frisar - vestidas de noivas - tradicionalíssimas, é interessante ver - segurando seus buquês solenes. As chamadas não variam muito: "Vestidos para o verão"; "Vestidos para o inverno"; "Vestidos para o outono". Alternam-se lembrancinhas e bem-casados, bem-casados e lembrancinhas. E não espere encontrar idéia para um vestido nessas revistas. As páginas trazem modelos que fazem qualquer pessoa com um mínimo de senso do ridículo torcer os lábios num esgar. Mas, ainda assim, você vai adiante.

Vai adiante, e se depara com as fotos dos noivos vestidos como se fossem verdadeiros Príncipes Encantados - alguns, inclusive, de escorridas madeixas loiras, um pouco frustrados por estarem sem sua lança para combater o dragão. Deve funcionar com adolescentes. Talvez seja isso: talvez a noiva seja a derradeira representação infantil feminina - depois dessa, é a decadência. Depois das alianças, o próximo passo é ser mãe e já não deve ser a hora de fantasiar consigo mesma - deixe isso para a criança, receptora de trezentos desejos e vontades e frustrações e medos. Portanto, a hora do casamento é a última hora de fazer um papel um pouquinho ridículo sem parecê-lo tanto assim.

Mas as pessoas têm, sim, senso do ridículo e enxergam, sim, o ridículo papel que a noiva cumpre: o que há é um pacto silencioso, pois todos participam da mesma festa a fantasia. Na igreja, emocionados, estão o tio do interior metido em um terno apertado, há a tia solteira que, depois da maquiagem, parece saltada de uma tela de Picasso, há um excesso de formalismos e "falem baixo, por favor", irreconhecível. Mas é o seu casamento, e para que tudo saia do jeito que você sempre sonhou, você pode contar com ajudas importantíssimas.

Lá estão as moças do cerimonial: na primeira conversa, ela diz a você que é impossível um casamento dar certo sem o seu apoio. Você até ensaia um riso de canto de boca ("será que é por isso que há tantos divórcios hoje em dia?"), mas a cerimonialista fala com tanta segurança que você tem medo de parecer - mais uma vez - ridícula, e engole em seco, aprovando o que ela fala. Ao final de quinze minutos, você jura de pés juntos que não sabe como viveu até hoje sem a presença dela, e sabe que fará toda a diferença o fato de haver, na sua festa, uma cestinha com chicletes, aspirinas, linha e agulha, carinhosamente colocada sobre a bancada do banheiro. Ah, não se esqueça do engov. Ela lhe diz que tudo vai sair como você sempre sonhou, e ela é sua mais nova amiga de infância.

Aí você começa a se perguntar com o que realmente você sempre sonhou. Busca, busca, e se lembra que, de fato, você queria um príncipe, um castelo e uma cama com dossel. Só não sabia que, pra isso, precisava do cerimonial. Nem do iluminador. Nem do arroz importado - um que não é arroz de verdade, pode ser colorido e ter formato de coraçõezinhos: não machucam, não provocam a queda de ninguém, e custam mais de cem reais o quilo. Mas - e aí vêm aquelas vozes, em uníssono, que você ouve toda a vez que põe a cabeça no travesseiro desde que decidiu juntar os trapinhos -, mas só se casa uma vez na vida, e vale a pena gastar aos tubos para viver sua última fantasia da infância.

E não é mesmo ligado às fantasias da infância? Há uma enorme identidade entre festas de cinco anos - de meninas, claro - e de casamento. Algumas lembranças só se encontram nessas ocasiões. Além das revistas, é interessante visitar sites de profissionais do casamento: fotógrafos, decoradores, cerimonialistas (claro!). Às vezes me deparo com coisas que me fazem suar frio. Porta-retratos de chocolate, por exemplo. E com fotos dos noivos, apaixonados! Pergunto-me sobre a reação do jovem e feliz casal ao ver, disputando espaço no chão com os quadradinhos brilhantes e grudentos da chuva de prata, a imagem dos dois, sorrindo, enlevados (Será que as pessoas ainda têm a ilusão de que a lembrança de um casamento é realmente mantida por alguém, exceto pelas avós e tias solteiras? Pobres noivos. Ou pobre noiva, porque o rapaz já sabia - até tentou avisar -, mas quem consegue argumentar com noivas?!)

Isso, claro, sem falar nos convites - alguns vêm em delicadas caixas preenchidas com perfumadas flores secas -, sem falar nos noivinhos que vêm sobre os bolos, sem falar no triste espetáculo do arremesso do buquê, sem falar na intensa e implacável cobertura foto-cinematográfica, que promete registrar todos os momentos de sua festa inesquecível - até porque, com todos esses profissionais, vai ser quase impossível você saber, sem o registro posterior, como ela foi. Mesmo assim, você ensaia o seu sorriso mais natural e enfrenta os flashes do início ao fim.

E, ainda assim, as pessoas querem se casar. E, ainda assim, eu vou me casar, e fui enredada por - quase!!! - todas essas armadilhas que só surtem efeito em noivas, essas criaturas neuróticas e infantis que se dispõem a atravessar uma via crucis porque sabem, ou pelo menos esperam, que só se casa uma vez na vida. Eu sei. Mas, por favor, sem cerimonial e porta-retratos de chocolate. E, sim, me emocionando com tios e tias, ainda que não pareçam naturais em seus trajes mais formais. Há, no fim de tudo, a sinceridade que nem as máscaras das convenções sociais conseguem esconder.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)