segunda-feira, outubro 29, 2007

Cinema mudo

A moça da cadeira à esquerda olhava, fixamente, a enorme tela, fungando disfarçadamente de minuto em minuto. Não era dezembro, mas as ruas lá fora perfumavam-se, frescas, contrastando com o vento morno que soprava nos rostos cansados. Dentro do velho cinema, porém, o mesmo cheiro de mofo disfarçado pela manteiga dos sacos de pipoca, das balas e chicletes, cítricos ou enjoativos. Mas a moça da cadeira à esquerda destacava-se naqueles odores: eu sentia um cheiro leve de sabonete, e quase sentia sua inaudível respiração. Atenta, atenta. Eu, ao lado, disfarçando. Não que eu não estivesse gostando do filme – romances não costumavam me agradar muito, mas alguma coisa naquele fim de tarde me levou ao antigo cinema, e a trilha sonora me dizia qualquer coisa que não consigo dizer; talvez me levasse aos tempos de infância, ao tempo em que se passava a história do filme. A moça ao lado, sozinha. Cada vez menos eu olhava para a tela, e eu só entendia a história a partir das poucas falas em inglês que eu conseguia compreender, até que a moça pareceu perceber que eu a observava, pretensamente discreto, e endireitou-se na poltrona, enrubescendo. Deve ter enrubescido – não via, na penumbra –, pois assumiu uma postura entre firme e envergonhada, baixando os olhos por momentos. Deve ter baixado os olhos. Eu voltei os olhos à tela, imediatamente, e a mocinha da história caminhava, reflexiva, à beira de uma praia de escuras areias, alheia ao vento que, sem dúvida, era frio. A moça da cadeira à esquerda moveu-se, e eu me virei instintivamente: agora, ela tinha os olhos em mim, tímida. Tinha qualquer beleza cotidiana, combinando com o cheiro leve de sabonete, e os cabelos presos sem malícia. Nós nos olhamos: com calma, estranhamente, reconhecendo-nos. Éramos iluminados por segundos pelas cenas do filme, e a moça da cadeira à esquerda me parecia bonita quando empalidecia à luz intensa de uma manhã inexistente fora da tela: assumia um olhar dramático e inquietante. Olhamo-nos, e assim ficamos, por segundos, vez ou outra tentando disfarçar o que era indisfarçável: ela tentou ver as horas, eu procurei no bolso um chiclete que não havia. Mas o volume da música aumentou, anunciando o final feliz, e ela voltou-se novamente para o filme, retornando ao atento e fixo olhar. Eu não insisti. Olhei para a frente, e a mocinha do filme reencontrava seu grande amor – momento de muita importância e emoção. Eu ouvi a moça da cadeira à esquerda fungando novamente, e nós nos olhamos e ela se aproximou, repetindo o gesto da atriz de Hollywood que fechava os olhos e aproximava os lábios entreabertos aos do galã de Hollywood, beijando-o apaixonadamente. Segundos depois, desvencilhando-se de meus braços atônitos, ela olhou a tela e viu o casal, de mãos dadas, cada vez mais distante, cada vez menor, atravessando lindíssimo cenário natural. A moça levantou-se, virou-se para a esquerda e atravessou a fileira de cadeiras estofadas que agora se iluminavam, mostrando uma quase densa camada de poeira sobre elas: a moça da cadeira à esquerda desapareceu no mesmo momento em que na tela se lia, em letras desenhadas, the end.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)