quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Amanhecendo-se

Acordando cedo, viu a lua que era um cílio branco e brilhante no céu indeciso entre o azul e o lilás. O ar frio e úmido despertou-a até as pontas dos dedos sempre dormentes. O silêncio gritava para além da janela aberta, para além dos territórios alcançados por seus olhos. Era o momento da inspiração: respirar a manhã que bocejava, colorindo as montanhas e as nuvens esparsas, aceitar o mundo que se oferecia quieto e vibrante.

E nesse momento ela compôs o mudo poema de sua vida.

Calendário

Aproveitei o brilho dos dias de fereiro. O sol. A brisa fresca da madrugada. A multidão de euforia colorida. Os silêncios, os espaços, as reticências. A doçura do cheiro de verão. O suor amolecente. A música alta. Plenos luares. Emudecidos recortes de montanhas. A linha do horizonte, serena e azul. As nuvens como véu. As palavras, as imagens, os sentidos. Todos.

Aceno ao fim do mês. Os dias mais longos acabaram de ser deixados para trás no verão que ainda ferve em mim, e eu como que sinto um prenúncio antecipado do inverno. Sofro pelo frio ainda distante, mas certo. Mas, ao mesmo tempo, imagino e recordo seus sabores. E cheiros. E cores. E ventos e chuvas e sóis.

E já consigo pressentir a primavera.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Mural

Eu já deveria ter transcrito este poema há uns dias, quando o carnaval ainda se fazia inexplicavelmente em céu azul sem nuvens sobre minha cabeça. Mas, como adoro Manuel Bandeira em qualquer essa época do ano, ainda está em tempo...

NÃO SEI DANÇAR

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...
Esta foi açafata...
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal:
tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
acugelê banzai!

A filha do usineiro de Campos
olha com repugnância
para a crioula imoral,
no entanto o que faz a indecência da outra
é dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

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É, carnaval é mesmo "tão Brasil". E ninguém se importa com nada. E isso não é mesmo bom?

A propósito, o "Não sei dançar" (assim como vários outros textos do Bandeira) foi escrito aqui em Petrópolis, 1925. Saudades da época de ouro da minha cidade - que não conheci.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Ainda sobre o carnaval: um enigma

Não, eu nunca fui muito ligada em carnaval. Ontem tentei assistir ao desfile da Mangueira - não tanto pelo samba, ou pela escola, ou pelo carnaval, em si: o que me atraiu foi o enredo, que eu não poderia deixar de aplaudir, apaixonada que sou pela Língua Portuguesa. Ainda assim, dormi nos primeiros dez minutos. Desfile de escola de samba na televisão é, sim, uma coisa muito chata.

Não conhecia samba nenhum. Não tenho grande torcida por nenhuma agremiação (houve uma época em que tinha uma leve inclinação para a Imperatriz, mas ela anda esmaecida, não sei por quê). Não assisti a desfile nenhum no domingo ou na segunda.

Agora, o enigma: por que, apesar disso tudo, eu sempre fico de olhos grudados na televisão na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, assistindo à apuração dos desfiles que eu não vi?

(Às vezes eu me descubro meio estranha.)

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Fragmentos carnavalescos

Sol, sol, sol. Pessoas. Muitas pessoas. O batuque à beira da praia. A gota de sangue escorrendo na sandália branca. A alegria que vem do nada, sem motivo, sem razão - alegria. Contagiante como todo clichê. Contagiando pessoas, pessoas, pessoas que pulavam e gritavam e sorriam sem motivo algum. O sol se debruçando sobre os contornos do Rio. A velhinha se debruçando sobre a janela do quinto andar. O lilás do anoitecer se debruçando sobre as ondas repetitivas. As vozes em imperfeito uníssono. Calor, cerveja, suor. Abraços de braços fortes e masculinos. Estrelas em arquinhos e tiaras de rainha.

E o mar, indiferente. Espuma branca tomando a areia brilhante ao sol do meio-dia. Calor. Pessoas. Olhos fechados: a solidão. O esquecimento do mundo. Gota de suor escorrendo na pele que arde. Colorido de guarda-sóis chocando-se contra o anil.

E a quarta-feira esfarelando o carnaval feito confete no asfalto. Feito biscoito Globo desmanchando-se na areia. Fragmentando a multidão que parecia uma só. Feito as cinzas de recente combustão.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Fast love

Ela ainda quis falar alguma coisa, mas a voz cansada desistiu ao imaginar o obstáculo que os lábios cerrados representavam, tão distantes. Inútil esforço. Então ela afastou-se do homem que pensou ter encontrado para toda a vida, e riu alto, despudorada. O ar noturno de janeiro lhe daria outros homens para toda a vida. E as potentes caixas de som do salão inteiro vibravam sob sua pele.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Quanto ao futuro

Para Iago

O sabor dos dias foi modificado. Respiro mais profundamente, e acelero por nada. Quanto ao futuro, ele está aqui, fazendo-se presente embrulhado com laço de fita. A lua ontem à noite apareceu entre véus de nuvens distantes. Também o perfume é outro. Quanto ao futuro, ele inunda meus pensamentos e sonhos e palavras. Presente.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Quando me basta a imagem


E é só.

(Tirada no Parque São Vicente, à beira da serra, no espetacular final de tarde da última terça-feira.)

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Dive

"Existe uma comunhão essencial na natação, como em todas as atividades flutuantes e, por assim dizer, musicais. Além disso, há a maravilha da flutuação, de ficar suspenso naquele ambiente espesso, transparente, que nos ampara e nos envolve. Podemos nos mover na água, brincar com ela, de um jeito qeu não tem nada de análogo ao que se passa no ar. Podemos explorar sua dinânica, o seu fluxo, numa direção ou em outra. Podemos mover as mãos como hélices ou direcioná-las como pequenos lemes. Podemos nos transformar num pequeno hidroplano ou submarino, investigando a física do fluxo com o próprio corpo." - Oliver Sacks, em "Por que adoro nadar" (piauí, janeiro)
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Ela jogou-se às pequenas ondulações daquele mar transparente, e deixou que a água batesse em suas coxas, delicada. Havia a brisa que assoviava em seus ouvidos e desarrumava os antes ordenados cachos castanhos, mas ela não se importava com isso. Movia-se rapidamente em direção ao verde mais escuro, e já sentia a água envolvê-la até pouco acima da cintura, quando ela, então, se jogou naquele cristal que balançava. O corpo todo, num arrepio, esfriou-se ao intenso contato com aquela água alegre e límpida. Abriu os olhos e viu os desenhos que o ir e vir das águas imprimia na areia branca e fina; viu também pequenos peixes apressados e sinuosos passando debaixo de seu ventre. Ganhava o mar com suas braçadas, e sentia o rosto arder levemente com aquele sal, repuxando sua pele. Nadava sozinha, experimentando a visão de sua sombra desenhada no chão, brilhando aos raios do sol do meio-dia. Seu corpo era outro, mudara o seu peso. Mais algumas braçadas e ela atingia uma profundidade maior; seus pés não mais alcançavam a areia que, contudo, ainda era vista, nitidamente. Agora, sim, podia descansar; as pessoas brincavam ruidosamente na gentil arrebentação, distantes, e ela se via sozinha entre as duas ilhas de praias de areias finas. Havia uma corrente de água gelada, e seu corpo se retesou àquele inesperado. Virou-se de barriga para o sol, dava braçadas olhando para o céu, via as gaivotas voando em bandos e mergulhando em vão. Dançavam. Ela também dançava, e era levada suavemente pelo mar balançante, equilibrando-se naquela massa fria e delicada. Mergulhava, tentava achar o fundo, não o encontrava, subia à tona, respirava ofegante. Fingia perder os sentidos para sentir-se afundar. Movia as mãos, agitando as calmas águas. Não ouvia mais os gritos de alegria e susto das crianças com seus baldinhos no encontro com as ondas, mas sim o barulho do vento, dos pássaros e da água que, vez ou outra, chocava-se mais firmemente com seu rosto. Havia a alegria do contato, do mergulho, do encontro. Não pensava em nada, só sentia. Deixava-se levar, sem leme, à deriva, só para depois nadar mais, e mais, e mais. Só para depois exigir de seus braços e pernas o vigor e a desenvoltura dos movimentos coordenados. Só para depois olhar em direção à areia branca e pensar, unicamente, que aquele era o seu objetivo.

Ela nadou até o encontro das pequenas ondas com a areia branca e fina. Seus pés tocaram o chão macio, e o vento secava a água e o sal que escorriam de seus cílios, seus cabelos. Os olhos franzidos encaravam o céu intenso, encaravam os guarda-sóis meticulosamente alinhados. Ela saiu do mar, mas era outra. Límpida, calma, clara, ela saiu da água e deitou-se na areia, braços abertos buscando o calor. Límpida, calma, clara, cheia de sal em seu corpo, ela sentiu a maresia envolvente que lhe punha em secreta sintonia com aquele mundo em que submergira. Era uma mulher de vários mundos, ela, tão banal. Sorriu para o sol, seu cúmplice. Lá estava o mar. E lá ela se descobria, profundamente.

Para não esquecer

A lua que já mingua apareceu entre as nuvens fugidias e esparramou-se sobre o banco vazio do carro - luxuoso luar de domingo. Guardo as tuas palavras que ainda soam em meus ouvidos, fazendo-me dirigir sorrindo. A estrada iluminada se abre aos meus olhos. Estamos chegando; já não falta mais tanto. E o calor da sua mão está guardado entre meus dedos.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Logo ali...




Será que não tem como dar uma fugidinha de volta pra janeiro?

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)