quinta-feira, janeiro 20, 2011

Unexpected?

No dia em que meu pai morreu, eu parecia alguém representando um papel - mas não era eu, exatamente. Vesti-me perfeitamente no papel de filha de luto, alguém entre a dor e o respeito, entre o silêncio e o soluço. Vesti-me, embora colorida, da sobriedade que a situação exigia. E eu era mais situação que qualquer outra coisa.

Por entre as horas que passavam, no entanto, a dor se infiltrava, silenciosa. E aquela segurança minha, aquela sórdida segurança que esconde o terreno instável em que nos encontramos, aquela segurança se liquefazia, aos poucos, em lágrimas solitárias e medrosas. A dor me ganhava.

Não sei como, não sei quando sofri. Talvez tenha sofrido por toda a minha vida, e também o sofro agora. Talvez tenha me acostumado ao sofrimento que me acomete a cada vez que meu corpo toca o lençol e a luz tênue do abajur se esvai. Talvez nunca em minha vida tivesse me dado conta de que o que tanto se teme também se torna real.

Antes, tentando me acalmar, pensava às vezes que aquilo que mais tememos é o que jamais acontecerá. Mentira. Mas também não acho em mim qualquer capacidade premonitória. Acho em mim, sim, uma dor fria, quase coagulada, que não me faz abrir a boca em grito.

Mas abro a boca, talvez em suspiro. Ou abro os olhos, tentando impedir, em vão, que a lágrima corra rosto abaixo. Tentando impedir que a dor soterre qualquer vontade de vida.

No dia em que meu pai morreu, eu morri um pouco, também. Eu morri bastante. E enterrá-lo, sob um sol ironicamente brilhante e feliz, entre suspiros de tristeza profunda e de calor sufocante, fez com que enterrasse uma grande parte de minha vida. Aquela parte em que bastava fechar os olhos e imaginar que tudo ficaria bem, que pegaria no sono. Aquela parte em que, na verdade, eu tinha a plena certeza de que tudo ficaria bem. Lindos tempos, esses.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Da serra e do mar

Sempre fui das montanhas. E do mar. Sempre, talvez, tenha sido da serra do mar. Escarpada, íngreme, mas com um horizonte dócil e reto. Um horizonte alheio a qualquer movimento.

Mas a serra, a terra, não é firme. Ilusão a minha. Venderam-me como terra firme, o escorrediço. E é, de fato? Toda eu escorrego em medos, inquietações, angústias. As árvores, que antes sombreavam, agora esperam, espiãs. Atentas, talvez, ao menor ruído dos trovões distantes. Atentas ao céu que se liquefaz.

A terra se liquefaz. A serra. Tão certa apontando para o céu. A serra se liquefaz e vamos, a caminho do mar, ainda que por tortuosos destinos. Sempre em busca daquele secreto horizonte, tão firme, tão dócil, tão reto. Tão alheio.

A serra - erra? - que se move e que nos move, nômades aprisionados entre árvores centenárias. O seguro existe? O céu que nos protege?

A serra do mar: ondas. Ondas que se veem de cima do avião, ou das vertiginosas hélices dos helicópteros que se afastam mas não nos escapam. As ondas em que nos posicionamos, rijos, firmes, claros, nobres. As ondas que não se sabe quando vão.

Onde arrebentaremos nós, os (da serra) do mar? Onde a espuma se faz areia, onde o rio se faz oceano? Onde se faz da terra o mar? Onde pomos os pés, sem prancha, sem sabermos se estamos à beira ou em águas profundas? Onde, como?

Inútil tentar descobrir. Serei eu íngreme, movediça, enquanto meus olhos pairam frente ao oceano a tudo alheio? Seremos todos nós?

Por enquanto, é noite, e um luar complacente banha as ondas das escarpas. É noite, e tudo silencia, tranquilamente. Mas, sei eu, sabemos nós, as ondas vêm. E elas não avisam, mesmo em janeiros, quando vão chegar.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)