Déjà vu
Ele andava firme entre as tímidas cerejeiras sem flores e folhas. Por mais fixos que estivessem os olhos, os pensamentos - ou impressões, ou sensações - não se seguravam por mais de breves momentos, e o ontem e o hoje e o amanhã - se ele existisse, se ele não fosse realmente uma continuação do hoje, e se as idéias sobre o tempo como um plano em que não há uma sucessão de acontecimentos fossem apenas abstrações inatingíveis para homens como ele - e o ontem, e o hoje, e o amanhã se misturavam estranhamente sem que ele pudesse evitar.De repente, sentiu que aconteceria algo que já sabia que ia acontecer: abriu mais os olhos, e enxergou, entre surpreso e consciente, o carro vindo em sua direção, atravessando a curva, arremessando seus faróis contra seu abdome que antes parecia tão mais forte, e sentiu as placas de metal contra a sua pele macia e quente, e um peso sobre seus olhos que o obrigou a jogar-se, a render-se, a cair ruidosamente sobre a calçada.
Silêncio vermelho, visgo quente.
Olhos abertos novamente: o carro sumia na curva, despedindo-se em fumaça. Pés fixos no chão, as cerejeiras haviam ganhado flores róseas, adolescentes. Apertando os lábios, sentiu-se inteiro: passara o momento, e seus dedos podiam tocar os cabelos que mantinham-se arrumados. Amanhã, ontem, hoje, e ele se via ao longe, e ele se via ao longo da via em que andavam pessoas apreensivas com o tempo que passava, irreversivelmente.
Um dia, porém, o carro veio de verdade - e ficou. Cristalizou-se a vida - passada? - sem horas nem décadas. Calou-se o tique-taque incessante, as ruas perderam o rumor dos passos ansiosos. E ele viu: sim, ele viu o ontem, o hoje, o amanhã, unidos e indissolúveis, e viu-se sempre, e viu-se todo, e entendeu algo que jamais conseguiria formular. Mas ele viu. E agora sabe, sem palavras ou perguntas. Agora sabe o sempre.