terça-feira, outubro 31, 2006

Refazendo...

Uma vez perdido, perdido para sempre?

Não, eu não deixei meu conto partir, simplesmente. A madrugada foi o momento para reescrevê-lo. Embora não seja o mesmo. Embora algo da carga que havia quando fui concebendo o texto, aos poucos, tenha se esvaído. A sensação é de que fiz o retrato piorado de um texto bem melhor. Talvez seja só impressão; talvez ele tenha sido apenas diferente. Apesar de ser a mesma história - nada mudou. Recompus, recompus-me.

A maior mudança, talvez, seja o destino dele: quando o perdi, estava digitando no blog - e lá foi ele. Talvez não seja para cá, mesmo. Agora ele está na tal gaveta virtual. Até que se perca, até que eu me perca.

Mas refiz. Está pronto, e tenho alguma sensação de dever cumprido.

Por enquanto.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Revolta

E hoje eu perdi um conto praticamente inteiro, que estava em seu último ou penúltimo parágrafo, e já era para estar publicado aqui.

Malditos sejam os computadores!

(Acho que as coisas não estão dando muito certo com a minha "literatice".)

quinta-feira, outubro 26, 2006

Considerações de uma quarta-feira quase quinta

Decidi que quero aprender a fotografar. Mas não faço idéia de como lidar com uma câmera menos óbvia. Aliás, nunca nem tive contato com uma. Mais um dos projetos do ano novo que já vem, mais rápido do que se imagina. E um projeto bem mais agradável que voltar para a academia.

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Muito embora precise. Retomando o que escrevi pela penúltima vez que passei por aqui, cito dois versos famosíssimos e repetidos à exaustão, mesmo por quem não entende o que ele quer dizer - adaptado por mim, desde uns dez anos atrás:

"Tudo vale a pena quando a calça já está pequena!"

E é isso. Venho aqui para escrever isso.

E o pobre do Fernando Pessoa, sentado à porta do café de Lisboa, sente uma pontada no peito de bronze.

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Cansei de ser engraçadinha. Ou de tentar ser.

Alguns dizem que sou engraçada. Mas, se isso é verdade, é justamente pelo contrário: na tentativa de ser engraçada, não tenho graça nenhuma, e isso faz de mim engraçada. Acho que dá para entender. Que seja compreensível, ao menos, porque engraçado não foi.

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Da mesma forma que quero parar de fazer gracinhas sem graça neste espaço, quero também parar de falar, ao menos um pouco, de minha vida. Nem estou falando tanto assim, mas vinha num ritmo bom de outros tipos de texto e, de repente, não consigo deixar de fazer disto aqui um diário público - uma idéia que, em minha concepção, beira o absurdo e quase a megalomania.

Não, a minha vida não é interessante. (Embora goste muito dela!!!)

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Mas, como ainda não me veio idéia alguma de como continuar algo pretensamente literário - ou melhorzinho, digamos -, continuo com esta falação da madrugada. E repito: preciso aprender a fotografar. Acho, aliás, que não tenho escrito mais coisas melhores porque eu agora ando pensando em imagens. O problema é que minhas imagens não têm recurso. Eu faria tudo para aprender a tirar uma foto macro.

Tudo, tudo culpa do olhares.com. O site é muito legal, bonito, bem produzido, e eu recomendo para quem tiver interesse em se inscrever para postar suas fotografias artísticas, ou só candidatas a - como as minhas. O problema desse site, como todo bom site, é que ele vicia. E é rápido.

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Agora tenho que:

- estudar literatura;
- ensinar literatura;
- fazer literatura (ou, ao menos, tentar, para depois não me arrepender do que não fiz);
- fotografar - com todo o processo de aprendizagem.

Coisas demais, penso eu. E uma vontade incrível de ficar perambulando pelas ruas, máquina pendurada no pescoço, feito turista, tirando foto de qualquer coisa que apareça na minha frente. Como a cena insólita, ontem, de dois cartazes do Sérgio Cabral, cada um com um candidato à Presidência diferente. Mas essa cena certamente será vista e revista até o domingo.

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Não, eu não vou falar sobre política.

Mas vou, sim, tentar tirar a foto.

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Resta dizer que eu não escrevo somente aqui. Ainda não sou totalmente desprendida, digamos, para publicar tudo o que eu saio digitando neste blog. Não sei se por vergonha, por medo da rejeição, por receio da invisibilidade depois de tantas expectativas. Por enquanto, há uma gaveta virtual em uma pasta dentro dos Meus Documentos.

Mas não se animem - e que eu não me anime -, provavelmente os textos não são lá grande coisa.

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Bem, acho que é isso. Espero que não tenha nenhuma outra verborragia que não leva a lugar nenhum tão cedo. Bem, de vez em quando... Será que é interessante?

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Ah, sim... Clique em http://www.olhares.com/suzanakloh ...

Agradeço sua paciência, caso tenha chegado até aqui!

quarta-feira, outubro 25, 2006

Mais uma idéia maluca

Fiz uma conta num sítio português de fotografia, e estou colocando lá alguns de meus (poucos) trabalhos "artísticos" - quanta pretensão!!!

De toda forma, se algum da minha meia dúzia de leitores fixos e eventuais se interessar, cá está o endereço:

http://www.olhares.com/suzanakloh

Agradeço o clique!

No entanto, só dá pra comentar lá quem tem conta... Ou seja, caso alguém queira reclamar o tempo perdido, escreva por aqui, mesmo...

Enjoy!

segunda-feira, outubro 23, 2006

De dieta

Fechada.

Para a balança.

Do anúncio do verão

Quase novembro, e faz frio. Onze graus agora, à noite. Chove, e hoje eu peguei uma das maiores cerrações de minha vida. O branco se instalou nos meus olhos. A temperatura do branco: o frio, molhado. A cegueira que se instala nos olhos de todos, um guarda-chuva colorido - barulho no silêncio denso como a nuvem em que caminho sem romper.

E, ainda assim, eu acordei sentindo o cheiro do anúncio do verão.O anúncio do verão não é simplesmente a primavera. A primavera é indecisa demais e, embora colorida, traz consigo um véu que a tudo cobre, volúvel. Não é assim o anúncio do verão.

O anúncio do verão é a promessa dos dias mais longos, ensolarados, mas não secos, com cheiro de terra molhada e sugestão de árvore de Natal. O anúncio do verão pertence aos meses de novembro e dezembro.

É quando se vislumbram as férias, os dias preguiçosos, mas cheios de uma energia que não se encontra em outra época do ano.

O anúncio do verão é o roçar da saia nas pernas suadas, é o sorvete tomado às pressas para não derreter, é o perfume que se adocica na nuca, às seis da tarde.

Calçadas cheias não fazem com que ninguém se impaciente no anúncio do verão: dá gosto andar pelas ruas e respirar o ar perfumado das árvores à beira do rio. Há um cheiro que prenuncia o mar, embora na montanha: é um cheiro que prenuncia toda a lassidão em que mergulham os corpos, é um cheiro que se entranha em minha pele e me acompanha no caminho dos dias - e das noites.

Meu corpo não agüenta mais o contrair-se e ressecar-se do frio. Quero a tontura quente dos dias úmidos, quero que o mundo escorra lentamente, fecundo.

E, embora faça frio, minha alma já grita numa explosão de anunciação: quente, úmida, fecunda. De brisa, de calor, de mar. Em minha alma, o verão já chega: eu o adivinho.

(Fotografia de Maria de Fátima Silveira)

sábado, outubro 21, 2006

Em mesa de bar

- Homem que tem aversão a mulher é misógino... Como se chama mulher que tem raiva de homem?

- Normal.






(E a resposta dada pelo namorado!!!)

terça-feira, outubro 17, 2006

Espancando Nemo - Apontamentos sobre uma ida a Búzios

As meninas estão ficando muito iguais. Cabelos iguais, roupas idênticas, mesmos sapatos. Andar à noite na rua movimentada traz a sensação de que houve produção em série de adolescentes altas, magras, cabelos invariavelmente lisos, vestidos curtos e fluidos. O mesmo sorriso, o mesmo empinar de nariz. Preocupo-me com a filha que ainda não tive: o que vou fazer para que ela não seja, simplesmente, mais uma a andar de noite na Rua das Pedras?

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"Dou minha cara a tapa se aquela mesa não é turismo sexual."

"Só porque são três estrangeiros de meia-idade com três mulatas de bunda grande e roupas insinuantes num restaurante na beira da praia? Acho que você é muito preconceituoso, meu bem."

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Acho que eu sou a única pessoa do mundo que compra um "Dicionário de termos literários" numa livraria da Rua das Pedras, num sábado à noite.

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Acho também que eu sou a única pessoa do mundo que passeia na Rua das Pedras com um guarda-chuva a tiracolo. Bem, para isso servem os namorados.

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"Muy precioso", a chilena não cansava de dizer. Pediu à argentina que tocava MPB num barzinho que a próxima fosse "País tropical". Cantou, enrolando as palavras. E se embebedava com caipirinha.

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Aliás, caipirinha é o que mais se bebe. Não tem nem pra cerveja. (Diga-se de passagem, a caipirinha costuma ser péssima nesses lugares.)

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Praia cheia. Brasileiros? Nem tanto. Bastava um breve olhar e perceber a quantidade de pessoas que liam na areia.

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Como não poderia deixar de fazer, aluguei, por uma hora, máscara, snorkel, pé-de-pato - como brinde, recebi uma garrafinha com miolo de pão para jogar aos peixes. Entrei na água, e me dirigi aos corais, onde ficam os cardumes. Não era longe; nem foi preciso nadar muito. Abri a garrafinha e os peixes vieram, vorazes. Há seis meses os peixes - parecidos com a Dory, de Procurando Nemo - me receberam com um ar quase blasé - mas não foi assim dessa vez. Eu senti centenas de peixes à minha volta, buscando os pedaços de pão, esfregando-se nos meus braços. Imaginava as boquinhas - com ou sem dentes? - na minha pele. Acho que as sentia, na verdade. Fechei a garrafinha, e nem assim eles pararam. Tive que tentar espantá-los! Mesmo sendo quase atacada, mantive minha consciência ecológica, e não atirei longe a tal da garrafa. Mas xingava os peixes. Desbocadamente. "Saiam daqui, seus peixes filhos da puta!!! Sai, seu peixe-piranha!!!!" Falava sozinha, em voz alta, certa da solidão. Suposta solidão. Havia vários barcos, vários caiaques, várias pessoas nadando e mergulhando. Imagino a perplexidade de quem estava por perto vendo uma criatura de snorkel se debatendo na água, xingando impropérios, desconsolada. Abrindo os braços sem parar. E também as pernas, para se manter estável. E o pé-de-pato direito escorregou do meu pé pueril. Ainda pensei que ele boiaria, às voltas que estava com os peixes vorazes. Boiou? Nada. Foi pros corais. Procurei, procurei, procurei. Perdi o outro, também. Bom, um pé só não adiantaria de nada. Gastei oitenta reais por causa dos peixes filhos da puta. Mas morri de rir com a seqüência de pequenos desastres. Como quando bati o nariz na barbatana do guarda-sol. Como quando fui beber água da garrafa que estava fechada, no chão, e fiquei com o rosto cheio de areia. É que nada tirava de mim a felicidade, que ia se esticando como chiclete em boca de adolescente.

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Búzios é um lugar lindo. Mesmo com o céu e o mar gris.

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E o sol, e as sombras, e a chuva, e o vento que embaraçou dezenas de vezes os meus cabelos. E as fotos, e os peixes quase assassinos, e os passeios, e os barcos, e os pés na areia. E nós. E nós lá, esquecendo-nos de todo o resto do mundo. Esquecendo-nos de que há neblina na serra, que há trabalho durante a semana, que há contas a serem pagas. Carpe diem. Instante-já. Aqui e agora.

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Deus, que as férias venham logo!

terça-feira, outubro 10, 2006

Eu, marítima

Não consigo disfarçar a ansiedade que toma conta de mim... Sim, está vindo o feriadão, está vindo a praia... Ou melhor: eu estou indo até ela.

Já busquei em minha genealogia qualquer traço de mineirice que fosse responsável pela imensa vontade de mar que sempre se fez presente. Não a encontrei. Ao que me consta, descendo quase que somente dos tais colonos alemães que chegaram a Petrópolis em 29 de junho de não sei qual ano, mas tenho também um tracinho de sangue lusitano. Talvez seja isso: Portugal - o mar, a partida, a saudade (inesquecíveis aulas de Literatura Portuguesa!). Talvez seja porque estou no caminho das Minas, quem sabe? O Caminho Novo, é bom dizer. Talvez seja mesmo por causa disso: estou no meio do caminho, quase à beirada da serra, com o mar do Rio de Janeiro já visível da montanha. Só que o mar, o mar dos mergulhos, o mar do encontro (meu encontro com o mar, meu encontro comigo mesma), o mar do sal secando na pele, repuxando-a, parece de outra dimensão, de um mundo ao qual não pertenço, ou, talvez, de um mundo do qual fui tirada. Sou do mar ou da montanha? Dos dois? Será que eles são conciliáveis?

O fato é que está chegando a temporada do sol, dos anúncios do verão, ainda que meus olhos só enxerguem neblina, e o limpador do vidro do carro nunca tenha descanso: só faz garoar. Minha pele precisa do sol, meu pulmão precisa do ar mais quente - leve? Preciso me sentir ao sol, preciso me sentir ao sal. Preciso do contato com a areia - nada mais lúdico.

E, abrindo a temporada, vamos à praia. Não, eu não consigo disfarçar a ansiedade. Amanhã será um dia corrido e, embora faça frio, eu vou ter que procurar nos fundos de prateleiras todos os protetores solares. Na quinta-feira, estrada pela manhã: quero ainda mergulhar à tarde. Renovar-me-ei? Sim, e farei felizes os supostos genes mineiros.

O triste é que a previsão do tempo não é das melhores... Diz que já chove a partir de sexta à tarde. Por isso, vou aproveitar tudo o que puder e o que não puder logo na quinta... E, claro, rezando pra que o tempo não seja tão rigoroso.

De toda forma, ainda que chova, ainda que vente, ainda que faça algum frio, lá estarei eu - eu e o mar, depois de longa espera. Com direito a areia, mergulho, máscara, snorkel, passeio de barco: eu, marítima. Se essa é a tendência atual da moda, por que não ser a de uma vida inteira?

Mural

Já que ando falando tanto de mar, vou postar aqui um poema do João Cabral de Melo Neto. Eu o utilizei em uma aula, ontem, e agora acho-o mais bonito que às primeiras leituras... De uma beleza sem derramamentos, sem grandes expansões: direta, certa, pontual. Lindo.

IMITAÇÃO DA ÁGUA

De flanco sobre o lençol,

paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,

na praia, te parecias.


Uma onda que parava
ou melhor: que se continh
a;
que contivesse um momento

seu rumor de folhas líquidas.


Uma onda que parava

naquela hora precisa

em que a pálpebra da onda

cai sobre a própria pupila.


Uma onda que parara

ao do
brar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse

no alto de sua crista





e se fizesse montanha
(por ser horizontal e fixa),
mas que ao se fazer
montanha
continu
asse água ainda.



Uma onda que guardasse

na praia cama, finita,

a natureza sem fim

do mar de que participa,


e em sua imobilidade,

que precária se adivinha,

o dom de se derramar

que as águas faz femininas


mais o clima de águas fundas,

a intimidade sombria

e certo abraçar completo

que dos líquidos copias.

Para o mar


Olhar para o mar: a superfície lisa, na aparência,
o azul-verde que se funde ao do céu
e ao das possíveis montanhas em torno.

Sentir o mar: o frio da onda que bate,
leve ou forte, carinho ou tapa,
a espuma que dança na pele e escorre,
deixando rastro de sal.

Beber o mar: na impossibilidade da imensidão
que se oferece, generosa,
na água que escorre dentro e fora de mim.

Fundir-se ao mar: o mergulho na água,
os olhos abertos, salgando até a visão,
dando ao corpo nova consistência,
novas formas, nova superfície.

Ser o mar: na distante calma aparente,
na agitação de suas ondas - mudança -,
na placidez da superfície
e exitação da areia dançarina,
existir somente no incansável bailar,
em nunca definir se deve ir - ou ficar.

Ele e ela: breve história de repetições


E então ele saiu de casa batendo a porta, sugando de dentro todo o ar que lá havia. O silêncio ficou insustentável; ela não conseguia respirar. Depois de cinco minutos alisando a toalha sobre a mesa, ela explodiu em choro, nervoso, sentido, evoluindo para os xingamentos. Não, ele não a merecia. Sim, ela poderia refazer a vida com um estalar de dedos. Afinal, por que ela estava chorando, mesmo?

**********

E então ele voltou para casa, sem bater na porta, levando pra fora a sombra que se havia instalado por duas horas. Ele não conseguia falar. Depois de vinte minutos lavando a louça do jantar, começou a assoviar a música que haviam escolhido como símbolo de seu namoro, de seu encontro - feliz? Ela vestiu no rosto uma expressão de terna perplexidade. O que foi deixando-a quente e, aos poucos, generosa. Sem que ele estalasse os dedos, ela caminhou até ele, abraçando-o. Choraram, silenciosos.

**********

Não, não foi a primeira vez que aconteceu. Também não foi a última. Também não foi a mais séria. No entanto, eles continuaram juntos, contrariando suas próprias expectativas. Eles trocariam tudo para chorar silenciosamente, tranqüilizando a procela dos momentos anteriores, mar suavemente ordenado. Em paz. Um soprando o ar diretamente para os pulmões do outro. Juntos, ainda que as portas batessem, ainda que freqüentemente. Apesar das silenciosas e momentâneas acusações. Sofrendo muito, eram venturosos na reconciliação. Não se imaginariam sem as brigas, sem as discussões: a calma só fazia sentido se houvesse a tormenta. E as duas existiam. Uma para a outra. Completando-se. Para que eles pudessem suportar o peso do amor, sem que os esmagasse. Para que eles não se sentissem perfeitos, e passassem a cobrar ainda mais de si mesmos. Para que o excesso de carinho que tinham um pelo outro não os anulasse, para que eles pudessem provar que eles não amavam, amando.

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Certo é que o amor também faz uso dos mais estranhos artifícios. Nem por isso mais certos.

domingo, outubro 08, 2006

A dança

Ela dançava, flutuava no chão, rodava a saia do vestido. Seus cabelos pairavam, em raros momentos imperceptíveis, sobre o ar pesado, carregado de fumaça de cigarro. Ela voava. A saia encarnada abria-se em flor. Ela rodava.

Ela suava, e os braços dele, tentando envolvê-la, dançavam em seu corpo escorregadio. Ela, quase intocável. Ele, arfante. As mãos que seguravam, por breves instantes, o tecido frio que se ia esquentando. Eles dançavam.

Eles dançavam, e eram o casal mais invejado da festa. Os passos: compasso. A respiração ritmada. Os sorrisos distribuídos, as pernas levemente enlaçadas. Os olhares, cúmplices. Invejados.

- Você me joga pro alto na próxima parada, ok?

- Não foi como nós combinamos?

- Isso, é só pra não esquecer.

- Nunca esqueço.

E as mãos de Gilberto tentavam segurar-se no corpo vestido de Celeste. Ele, comovido. Ela, mecânica. Aquele era o papel que ela deveria representar.

A leve parada da música. A banda que se preparava para o grand finale. A tensão do momento. Gilberto puxou para si o corpo leve e grudento de Celeste. Ela lançou-lhe um olhar de confiança - cobrança? Atraiu-a para si, empurrou-a para longe, fazendo encarnar, à luz do salão, a saia rodada do vestido, correu para alcançar suas costas curvadas, para levantá-la, alçá-la, jogá-la. Ela, joguete, marionete. Entregue, submissa. Cobrando, com o olhar confiante. Os profundos olhos castanhos de Celeste se fecharam por um segundo.

Confiança? Entregar-se? O que era aquilo, afinal? Havia anos que trabalhavam juntos, que dançavam juntos, que ela se jogava, que ela se deixava jogar, e Gilberto esperando. Gilberto esperava qualquer olhar que lhe desse permissão para enlaçar o corpo de Celeste sem que representasse o mero papel de seu par na dança de salão. Ele esperando, submisso, o momento em que ela cederia e o chamaria para dançar. Ele esperando que ela se abrisse em flor, ele esperando que jogassem tudo para o alto. Que a orquestra acelerasse a música e indicasse que aquele era o mais adequado momento para dizer que eles poderiam se unir sem que houvesse dança.

Mas não era esse o olhar de Celeste. Depois que seus olhos castanhos se fecharam por um segundo, embora entregue, submissa, Gilberto pôde ver que ela dava o melhor de si: e não o dava a ele, e sim a um rapaz, mais novo que ambos, que acompanhava, embevecido, o mais sutil movimento da moça no vestido encarnado de saia rodada. Percebeu, frio. Lâmina que penetra, silenciosa, na pele.

Celeste, submissa, curvada, entregue. Os olhos fechando e abrindo; os do rapaz, fixos. Ela estava diferente naquela noite. Não era como simplesmente deixar que outros homens dançassem com ela - era perceber que ela, de fato, o desejava. Não com outros homens, mas com outro homem. Que havia vencido Gilberto, mesmo sem que houvesse batalha.

Celeste, submissa, curvada, entregue. Gilberto puxou seu corpo, levantou-o aparentemente sem esforço. O corpo leve da moça subiu, voou, e o vestido encarnado desenhou sua trajetória até o chão. Até o chão. Um passo para trás, e Gilberto deixou de segurar a companheira - amada não amante. Um erro, como acontece com qualquer pessoa. Esquecimento bobo. E o baque no chão.

Todos correram, acudiram. Celeste desmaiou. Os olhos castanhos fecharam-se. O vestido, rodado, encarnado, murchou no chão sujo, cheio de pontas apagadas de cigarro. Doces pisados colaram-se aos cabelos castanhos como os olhos. Os lábios mantiveram um pouco do sorriso de quem se sabe observada.

Saiu Gilberto do salão. Ninguém o seguiria. Todos os olhares pertenciam a Celeste, a dama da festa, a que roubara o lugar até da noiva. A que caíra no chão, ainda assim, graciosa. E Gilberto seguiu.

Celeste se recuperou. Foi levada ao hospital, fez os exames, e nada de grave foi detectado. Sorte, talvez. Uma dorzinha de cabeça e nas costas, um analgésico, e ela ficou boa em três dias.

Mas não foi assim com Gilberto. Não haveria mais par. Não haveria mais dança. Ele nunca mais fixaria o olhar castanho de Celeste - não, ele não atendia o telefone, embora ele fosse insistente. Decidiu que seria melhor não dividir sua dança com mais ninguém. Não seria trampolim da exibição de Celeste.

Mas, sim, sentia sua falta. Nas noites de sábado, melancólico, colocava uma música e dançava, imaginando tocar o corpo leve e rijo de Celeste. Nesses momentos, suas mãos se fixavam nele, e não havia platéia, não havia convidados, não havia noiva, não havia mulher mais bonita que ela. Não havia homem que chamasse mais atenção do que ele. Eles eram o único casal possível: o único casal perfeito.

Ele via sua imagem no espelho e fechava os olhos para sentir Celeste, que, àquela hora, dançaria com um outro par, em um outro salão. Uma lágrima correu silenciosa até a boca, e ele a sentiu, quase salgada. Olhou a janela - as luzes piscavam a quilômetros de distância. O vento tocava a música - o grand finale?

Parou, respirou, entregou-se. Felizmente, era ágil, rápido, flexível. A janela se abriu mais que os olhos de Celeste antes de ser jogada para o alto. Ele jogou-se, também. Para o alto, num primeiro momento. Para baixo. O asfalto negro tocou o encarnado de si mesmo - do vestido de Celeste. Um passo para trás. Os olhos fechados: a orquestra parou. A música, a quilômetros de distância, que fazia com que Celeste também fosse jogada para o alto, sem que sentisse sua falta.

Acabou a música, logo emendada a outra. Celeste recebeu os aplausos, simulando modéstia. Agradeceu, pretensamente ruborizada, e dançou - com mais dois, três ou quatro pares. Rodou a saia do vestido encarnado. Mas não se deixou jogar para o alto, novamente, como se pressentisse o perigo de estar viva. Olhou para o lado, para o homem que conhecera havia três semanas, e que traria certamente uma mudança em sua vida, e sorriu.

Ninguém suspeitou o que aconteceria a Gilberto, nem ele mesmo. Para ele, a música simplesmente deixou de tocar. Nem Celeste quis pensar nos motivos que teriam levado o parceiro a saltar, dançando, pela janela. O sorriso durante a dança era uma simulação do que não havia dentro de si - fato que Gilberto não notara.

E, depois, acabou-se. Celeste se casou com o rapaz da festa de casamento, teve três filhos, tornou-se senhora chique da classe média alta que se tentava impor na sociedade. Tentou aprender francês, mas gostava mesmo era da aula de lambaeróbica na academia. Lembrava-se de Gilberto? Sim, de vez em quando. Mas logo se esquecia dele, jogando a lembrança pra longe de si, afastando a idéia mortal de que também se pode sucumbir a uma paixão. Então voltava para a vida, pensava nas compras, nos deveres dos filhos e na academia do início de cada manhã, e tudo ficava mais calmo. Sua vida, cadenciada, não traria surpresa alguma. Até que chegasse seu grand finale.

(Fotografia de Maria de Fátima Silveira)

Das imperfeições

Dos terríveis vazios que constroem minha vida, construo-me. Se eu sei do que sou? Sei do que não sou. Sei de minhas faltas e ausências e carências e defeitos. Sei do que ficou faltando. Sei do que ainda não está bom. Sei do que nunca será bom. Sei de minhas faltas, sei de minhas ausências, sei de meus tensos silêncios. Sei das minhas intermitências, sei das minhas inconstâncias. Sei que nem sempre sei de tudo isso. Sei de minhas imperfeições, e isso basta.

Sei de meus plenos vazios, de minhas acertadas faltas, sei de meus estudados defeitos. Sei de mais alguma coisa? De mais nada.

No entanto, se fosse perfeita, seria mais banal. É que a humanidade dá a todos os seres qualquer coisa de inatingível em sua concreta composição. Inatingivelmente concretos. E os defeitos me compõem. E minhas falhas me descrevem. E minhas faltas e silêncios e inconstâncias e imperfeições são o que chamo de: eu.

Sou isso. (Im)perfeitamente (in)tangível. Sou isso. Grito no escuro, dança em silêncio, tropeço no caminho.

Entre vazios, faltas defeitos, descrevo-me. Encontro-me. Sinto-me. Existo.

E, já que não é mesmo necessário, deixo de fazer sentido. Sem explicação. Sem causa, razão, motivo. Assim: sendo.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Por ora

E, enquanto isso, sonho com a semana que vem - sim, ela vem!

Com os pés descalços na areia molhada. Ou seca. Com o sol colorindo um pouco o branco da minha pele. Com o calor que vem de dentro e explode em gota de suor, brilhante.

Com a água que, indo e vindo, me embala de olhos fechados...

Mas isso, só depois da monografia!

Tecendo filosofismos a partir da teoria literária

Escreveu Ricardo Piglia, em Formas breves:

A arte de narrar se baseia na leitura equivocada dos sinais.

Tal como as artes divinatórias, a narração desvela um mundo esquecido em pegadas que encerram o segredo do futuro.

A arte de narrar é a arte da percepção errada e da distorção. O relato avança segundo um plano férreo e incompreensível, e perto do final surge no horizonte a visão de uma realidade desconhecida: o final faz ver um sentido secreto que estava cifrado e como que ausente na sucessão clara dos fatos.

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E também não é assim na nossa vida?

O noturno silêncio

Noturnamente, eu me ajoelhei ao lado dos teus cabelos.
Bastos cabelos, anelados cabelos, silenciosos.
Noturnamente, eu silenciei, também, sôfrega,
o alarido do meu interior em festa e calor.
Noturnamente, sem que qualquer ser percebesse
- dedo de enfermeira, lábios trancados -,
eu me vi deslizando para dentro de nós,
perdendo-me, tangível.
Noturnamente, e eu respirava sentindo
o perfume o calor o arrepio o susto o riso
daquela noite tua e minha,
daquela noite em que eu,
noturnamente, calei-me gritando.

E fez-se o dia.

terça-feira, outubro 03, 2006

Sobre o anterior ao anterior

O problema é que tem tanto texto mal-resolvido...

segunda-feira, outubro 02, 2006

O que é (des)necessário

Às vezes é preciso se forçar a. A gente vive sem disciplina? Acho que nem sempre. Se a gente não se forçar a, não se vive. Ou vive-se sempre na expectativa do susto de ser pega de supresa. É preciso se forçar a fazer as coisas, mesmo sem tanta vontade. É preciso se forçar a acreditar naquilo em que não se crê mais. É preciso se forçar a dar um sorriso quando o que mais se quer é gritar. E também é preciso se forçar a dizer um não quando toda a capa de educação e gentileza e polidez e delicadeza aprisiona a gente dentro da gente. Às vezes é preciso se forçar a ser um pouco infeliz, só pra não se acostumar completamente com a alegria, e já prever o que virá num dia futuro. Ou que não virá. Mas é preciso se forçar a. Ainda que seja preciso se forçar a viver uma vida que você não escolheu para si. É preciso se forçar a ter alguma disciplina, a ordenar os livros na estante, a agendar os compromissos, a regular os horários. Às vezes é preciso se forçar a morrer um pouco. É preciso se forçar a neutralizar a brutalidade que há dentro da gente. Às vezes é preciso se forçar a não ser de todo bicho, e perder de vez todo o chão de terra humana que se pisa.

E tudo isso é tão difícil, pois entre a força que se faz pra dentro e pra fora da gente, nunca se sabe se excedemos - ou se fomos tão pouco. Às vezes é preciso se forçar a tentar, a se levantar da cama - por mais imersos que estejamos em nós mesmos. Às vezes é preciso se forçar a qualquer coisa, só pra perceber que não dá pra ser nunca dono de si mesmo, totalmente.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)