segunda-feira, abril 30, 2007

Sturm und drang

Porque chovia muito, Anabela ficou em casa. Olhando o céu que desabava convulso sobre os morros e casas, viu que não havia muito a fazer. Fechou os olhos a contragosto, e dormiu, e sonhou. Acordou: fazia-se a noite. Sem estrelas ou luar, mas noite. Um avião lá longe parecia não se mover no céu. Anabela bocejou apressada, tanta coisa deixada para trás. Tanta coisa sem ser dita, só por causa da chuva. Tanta coisa que deixou de escorrer terra abaixo, lavando toda a capa de gentileza que seus olhos cansados carregavam. Anabela não conseguiu chorar. Deixaria para o dia seguinte, adiando-se mais uma vez. E, além daquela rua, o mundo rodopiava silencioso, sem chuva ou choro, já seco e quase brilhante, fazendo com que todos acreditassem que estariam a salvo pelo resto dos tempos. Mas Anabela ainda tinha sua voz e seu grito, e o telefone - para ele caminhou, rápida e assustada de si mesma. Um relâmpago luziu ao longe no céu de nuvens opacas e vazias.

sexta-feira, abril 27, 2007

Ad eternum

Escorre nas vidraças a chuva da noite inteira.
Eu respiro vagarosa o cheiro da água no jardim.
Teu ligeiro sorriso visita meus olhos:
e eu quero que chova pelo resto dos tempos.

Mau humor: duas pequenas revoltas

Todo fim de abril é a mesma coisa: revolto-me contra o excesso de impostos que nós, pobres brasileiros pobres, temos que pagar. Depois de contas e contas e contas e contas e mais contas, chega a hora da declaração do maldito Imposto de Renda. Eu descubro vou ter que pagar - além do que já foi descontado mês a mês - o equivalente a dois meses de salário de um dos meus empregos. Fiz as contas e percebi que, dessa forma, ganho somente dois terços do que penso que ganho. Hora de repensar a vida.

A segunda revolta é pontual, bem menorzinha: por que pessoas que só trabalham de terça a quinta decidem que dia 11 de maio não vai ser feriado? Por que então levantaram essa possibilidade? Estou com a sensação de ter tido um doce roubado da minha boca.

Foi só pra reclamar, mesmo. E tentar diminuir um pouco o mau humor que está tomando conta desta sexta-feira de chegada de frente fria - sim, eu vou ter que sair na chuva.

quinta-feira, abril 26, 2007

Platonismo pós-moderno

Se eu toco, é real.
Se não, o que é?
Fantasia, abstração?
Desenho, esboço, borrão?
Sinto cheiros que não há.
Provo os novos antigos sabores.
Invento-nos palavras arcaicas,
modernizando-lhes a dicção.
Sou real, contemporânea:
em mim corre o mais atual sangue
da mulher desde o princípio -
mito fêmea lenda bicho
alma corpo pele rito
riso choro: grito.
Se queimo minissaias ou visto espartilhos,
pouco importa. Há o sangue. Há o som das
promessas e sonhos e sagas felizes.
Há os dias, há anos.
Ainda que me digam que não.
Ainda que me encarem e me olhem
e me chorem o choro que nem eu mesma quis.
Ainda que me digam que o amor
- este desconhecido -
só existe para mim.
Em qualquer outra irrealidade, lá está ele.
Que me importa se são minhas as suas palavras?
Elas existem. Eu existo. E me basto.

segunda-feira, abril 23, 2007

Ao trabalho

E a noite chegou em tons de âmbar, lilás, azul quase marinho.

Uma ou outra estrela salpicava, pálida.

Sem brumas ou névoas, sem véus ou mistérios: alegria quase quente de um outono ainda verão.

Além, uma lua pela metade.

Fôlego, a noite é longa. Há o que ver, há o que fazer. Há o que falar.

Fôlego, tanta coisa pela frente. E que passa tão rápido.

Quero aproveitar as muitas e muitas luas que virão, ainda que olhando entre as frestas, nos intervalos.

Fôlego, tanta coisa pela frente.

segunda-feira, abril 16, 2007

E por fim

Meu Deus, eu disse, eu disse e não consegui continuar a frase que irrompeu alta e ilógica de minha garganta. Os olhos estavam fixos no dia lá fora, um dia de temperatura indefinível, que me oprimia, pesadamente: nuvens densas e velozes correndo no céu de pequenos azuis embaçados, uma poeira de anos que se acortinava diante dos meus olhos. Meu Deus, e tudo o que conhecia era aquilo, o vale debaixo da janela, as montanhas ao longe e ao vento que não chegava a balançar as folhas mais pesadas dos arbustos mais baixos. Tudo o que conhecia eram aqueles limites, e não mais que os limites. Eu, no meio. Eu, o centro. Tudo tão à volta, tão protetor, ameaçando-me. Redoma. Tão certo, tão fixo. O centro, as nuvens que me rodeavam. Puxei o ar com a boca, repetindo, tantas, tantas vezes que o ar me foi demais e eu me senti mal. Meu Deus, eu disse, e não consegui olhar mais para o vale lá embaixo, não consegui mais olhar o dia lá fora, e tudo o que vi foi um imenso esmaecer do que estava diante de mim, perdendo a nitidez, perdendo as formas, as cores, os gritos vermelhos e amarelos e azuis e verdes entre a poeira dos anos. Tudo envolto e silenciado por uma repentina névoa pesada que me jogava contra a parede tão sólida, tão dura e serena. Meu Deus, eu disse, e minhas pernas não suportaram mais forjar o equilíbrio, e eu escorreguei, liquefazendo-me junto ao piso de cerâmica desbotada. Veio-me um frio do fundo de mim mesma: as mãos se umedeceram mais que os meus olhos fixos e perdidos. Nenhuma brandura, só a violência dos espaços vazios dentro de mim e de meu mundo que tomavam conta de todo o resto, e o vazio branco era assustador e calmo, e o abismo branco era eu mesma, inteira e só. Meu Deus, tentei pronunciar, tentei procurar, mas nem mesmo as palavras me vieram, e a chuva começou a desabar sobre as telhas barulhentas, e finalmente eu chorei, e finalmente eu cedi, e finalmente eu me esparramei sobre as superfícies tão desconhecidas, e finalmente meu soluço alcançou o vento e meu choro devolveu o ar que meus pulmões economizavam, e finalmente eu busquei o mar ao longe, quilômetros e quilômetros ao longe, e finalmente eu saí de mim para entrar no mundo, eu saí de mim buscando o abismo, eu saí de mim e corri para a chuva que pingava e me escorria e me sondava e me sabia, dançando-me entre os filetes entre as pedras e as areias, percorrendo-me caminhos desconhecidos.

domingo, abril 15, 2007

Entre os dias

Era assim a Catarina: palavras baixas, voz inflexível. Olhos? Olhos mornos, talvez sua maior definição. Se tinham cor, se eram o céu, ou o mar, ou o mel, ou o ébano por marfim envolto, pouco importava. Seus olhos eram mornos, e isso fazia com que ninguém se aprofundasse em sua análise, tão acessível e distante.

Palavras inflexíveis, voz baixa. Os gestos eram contidos, nunca se esparramando no ar quente daquele início de abril atípico. Fronteiras, delineação, contornos. Ela nunca era limítrofe. Sempre dentro, nunca à beira.

Havia uma música, e ela poderia ser desligada a hora que quisesse. Também poderia apagar as luzes, e o quarto voltaria a ser uma caixa escura: cubo. Mas lá estava tudo, cheio de cores, formas e alguns cheiros indefiníveis. Não podia deixar de sentir o aroma da terra molhada às primeiras gotas de chuva que se misturava ao mofo do armário aberto e ao couro dos sapatos baixos e novos sob a cama. Não adiantava fechar os armários. Não adiantava guardar os sapatos. Fazia calor e a janela não podia ser fechada.

Sempre centrada a Catarina. Começou por não suportar aquela confusão de cheiros bons e ruins. Lamentou não poder separá-los como fazia com os livros na estante. Lamentou o calor intenso quando já era outono - não poderia mais prever os dias, não lhe era mais permitido planejar tudo minuciosamente.

Então, numa segunda-feira à noite, Catarina pintou a boca com um batom quase vermelho esquecido no fundo de uma gaveta havia anos. Catarina calçou os sapatos de salto - os únicos que tinha - usados somente no casamento da amiga - a única que tinha. Catarina saiu de casa sem apagar a luz. Catarina pegou o dinheiro reservado para as duas semanas seguintes.

Então, numa segunda-feira à noite, Catarina provou duas bebidas diferentes em quarenta minutos. Catarina falou com quem não conhecia. Catarina riu alto só porque deu vontade. Catarina gastou mais dinheiro do que podia. Catarina quase foi atropelada. Catarina olhava o mundo e as pessoas. Mas não olhava, simplesmente. Catarina olhava o mundo e as pessoas com fome.

Por algumas horas, Catarina sentiu-se feliz. Depois, dia seguinte, terça-feira entre cinza e sol, Catarina espanou da cama desordenada as lembranças e sensações dos momentos. Limpou os sapatos, jogou fora o batom esquecido - e deu-se à ordem novamente.

quarta-feira, abril 11, 2007

In illo tempore

É só porque é interessante e, na falta de inspiração em que me vejo atualmente, não dá pra desperdiçar nada... Saiu ontem no Globo, no Segundo Caderno, um texto que chega a ser divertidíssimo - e que fui publicado há exatos 50 anos:

Na Rua das Laranjeiras 11 funciona o Centro Paroquial da Glória, instituição de assistência social organizada pelo monsenhor Mota, da Matriz de Nossa Senhora da Glória, e que mantém cursos de alfabetização de adultos, de preparação para o casamento e donas-de-casa, de corte e costura, de decoração do lar e outros que visam à elevação social dos paroquianos. O repórter encontra na sala de aula duas dezenas de moças, umas noivas, outras sem compromisso. Desejam elas aprender a dirigir com estética e economia uma casa.

Sem afetação, sem relevo entre as demais colegas, uma aluna igual às outras. Elvira da Veiga Wilberg assiste à aula da professora, dona Robereta Macedo Soares. Aprende a ser dona-de-casa, instrui-se sobre os deveres de esposa e de mãe. Ela foi Miss Distrito Federal em 1955. É jovem e bonita, alta, loura, porte elegante. Mas não se conduz apenas como miss de beleza: conduz-se com a dignidade de aluna comum. O que as colegas desejam ela também deseja. Quer ser uma completa mulher em seu futuro lar. E o será, como as demais o serão, graças aos ensinamentos que recebem.

Dona Roberta fala em sala das atribuições da dona-de-casa. Cada aula dura cerca de três horas e meia, tempo suficiente para uma educação especializada e útil no lar. O curso terá a duração de dois meses. Findo o período, as moças receberão diploma de aptidão. Aptidão aos encargos de dona-de-casa, de esposa, de mãe.

A família brasileira se fortalece em sua estrutura moral e social. E se fortalece com o esforço e a elevação de dignidade dessa geração de adolescentes que tem idéias e ideais.

**********

Adorei! Diploma para poder casar!! E eu, a menos de seis meses de ansiado enlace matrimonial, não sei fritar um ovo. Nem pregar um botão. Nem passar uma camisa.

Apesar disso... Garantiria o diploma um noivo? Havia moças ainda descompromissadas, certamente daquelas que começavam o enxoval aos doze anos e precisavam colocá-lo ao sol de quando em quando. Sim, existem essas historias, e elas são verdadeiras.

Gostei mesmo da postura da miss. Ela se conduzia com "a dignidade de uma aluna comum", e desejava ser "uma completa mulher em seu futuro lar". Mas precisa de tudo isso? Céus, cheguei à crise de identidade.

Pronto. Lá se vai meu sonho dourado: não posso ser dona-de-casa, não posso ser esposa, não posso ser mãe. Mas é claro que sou teimosa e tento, mesmo assim.

Não deve ser tão difícil fazer um bolo pra quem já escreveu uma dissertação. É claro que há as aptidões pessoais, eu sei disso, e não discuto que existe o talento para a culinária, por exemplo - uma verdadeira bênção. Mas também se vive sem talento.

Faltou apenas uma coisa no texto: o fim fala da "geração de adolescentes que tem idéias e ideais". Para além do jogo verbal, onde estão eles? Ser miss? Viver única e exclusivamente para a casa, para o marido, para os filhos? Saber como lustrar uma fechadura como ninguém?

E fica nítido o hiato que há entre mim, pré-balzaca casadoira de dois mil e sete, e Elvira da Veiga Wilberg, e tantas outras dezenas e centenas e milhares de mulheres dos idos de cinqüenta e de antes e até depois. Mas, sim, ainda faz alguma falta um certo domínio das coisas na cozinha.

Não sei, mas acho que prefiro as minhas idéias malucas na área da literatura - e da literatice.

segunda-feira, abril 09, 2007

(DES)Classificados

A Tribuna de Petrópolis sempre me divertiu muito. Há uma incrível falta de notícias interessantes. E, claro, é freqüente um certo desleixo. Ultimamente, pouco tenho lido da Tribuna. O fato é que me caiu nas mãos o exemplar do sábado retrasado. Folheio, folheio, folheio, e paro nos classificados, uma das coisas mais divertidas. Deparo-me com um anúncio assim:

Precisa-se de ATRIZ PORNÔ c/idade entre 18 e 25 anos. Interessadas enviar foto de corpo inteiro (recente), dados pessoais, e-mail e telefone p/contato. Para o e-mail ***********. Não é necessário experiência.

Quer coisa mais inusitada? Havia também a irrecusável proposta de algum dono de casa no Peró que oferecia hospedagem de graça para as férias de um pedreiro aposentado com sua esposa - ou equivalente -, pedindo apenas seu trabalho em troca. Ah, o magnânimo proprietário oferecia transporte para o casal apaixonado, também. Eu juro que me surpreendo com a generosidade das pessoas.

Quanto à procura da "atriz", achei interessante não pedir experiência. Inusitado, novamente. Assim como a redação do pequeno anúncio. Assim como o endereço de e-mail: "school_pstar"@alguma coisa. Vou tentar entender essa ligação de palavras.

P.S.: Para quem está interessado nas propostas, pode encontrar a solução pra falta de dinheiro aqui...

segunda-feira, abril 02, 2007

Excessivamente

De repente, vêm as palavras em profusão. Claras e várias, sonoras e intensas. Não, agora não é nenhuma tentativa de literatice. É meio que um desabafo, mesmo, embora não chegue aos ouvidos - ou aos olhos - do destinatário. Fica como terapia, e mais nada.

É bom viver a vida sem pensar muito no preço das coisas, embora a gente saiba que não se consegue muita coisa sem dinheiro algum. De toda forma, as árvores floriram num março ensolarado - e de graça. A capela no alto da montanha estava lá para quem fosse visitá-la, e não havia bilhete de entrada. As nuvens se enfiaram na frente do sol só para fazer um entardecer mais bonito. E há pessoas que ainda passam os sábados e domingos e madrugadas e chuvas e sóis na frente do computador. Devorando livros - nada contra, por favor, mas é que tudo em excesso faz algum mal. Ah! E livros acadêmicos, nada do prazer da literatura, essa viagem. Livros acadêmicos ou sobre queijos. Não, nada charmoso, nada associável a vinhos: livros que falam sobre mexer em queijo. Enquanto isso, adiam eternamente o momento em que se defrontarão consigo mesmos num conto do Machado de Assis. "O espelho", por exemplo. "Teoria do medalhão", outro. "O enfermeiro", que também é indispensável.

E a vida se fazendo nos intervalos. Nos intervalos do trabalho, na pausa para o café. As palavras não-oficiais. Os fins de semana. Os sábados e domingos ligeiros, plenos de brisas. Meu primo me chamando de Nana, aprendendo a contar sem ter a idéia de quanto sejam quatro formigas. Meu outro primo sorrindo em sua festa de aniversário. O presente de madeira, baratinho, para ser todo aproveitado pelo bebê de um ano. Sem grandes sofisticações, sem grandes exigências. Porque a vida, essa dos intervalos, geralmente não cobra nada da gente.

Um lado excessivamente humano que descobri em mim também me dói: eu, às vezes, odeio. E isso me dói porque isso significa que sou pior do que supunha, e que determinada situação me afeta muito mais do que gostaria - embora faça uma força para provar o contrário. Mas sei que me esqueço com relativa rapidez das coisas. Sei que daqui a semanas, meses, anos, todas essas situações serão só esboços descartados de uma obra ainda em composição. Que é a vida, a dos intervalos.

E como sou feliz nos intervalos. Mesmo quando nada de importante parece acontecer. Mesmo quando só há o silêncio ou o azul ou o branco. Mesmo quando fecho os olhos aos poucos e começo a sonhar qualquer coisa de que não me lembrarei depois. Mesmo, ou principalmente. Como quando acordo cedinho e vejo que ainda posso ficar na cama. Ou como quando o filme está apenas começando e eu já gostei dele. Ou quando eu escuto qualquer palavra baixinho, perto do ouvido. Ou como quando estou com meus primos pequenos, fazendo toda sorte de palhaçada para eles riam por horas seguidas, uma risada gostosa de dentinhos separados. Ou como quando cheiro seus cabelos loiros ou castanhos, lisos ou encaracolados.

E, assim, descubro que certa está minha amiga Rachel: escrever é uma terapia. E saio mais leve depois de ter botado uns demônios pra fora, ainda que meio sem nexo. É que às vezes a gente precisa disso. Nós, essa gente excessivamente humana.

"A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras." (Roland Barthes)